Jamais a Santa Sé seria a mesma depois daqueles dias surpreendentes,
entre os meses de fevereiro e março de 2013.
Em Roma, como enviado
especial da GloboNews para a cobertura do conclave convocado pelo
próprio Papa Bento XVI, foi possível acompanhar uma série de
acontecimentos inéditos no Vaticano, que teve início com a decisão de
Ratzinger em renunciar ao seu pontificado.
Isso não ocorria há seis
séculos.
Tão surpreendente quanto a renúncia, foi também a escolha pelos
purpurados que se reuniram na Capela Sistina naqueles dias de muito frio
e chuva: depois de cinco escrutínios, foi eleito o cardeal argentino
Jorge Mario Bergoglio, o primeiro papa latino-americano, o primeiro papa
jesuíta e o primeiro papa Francisco da história da Igreja.
O gesto revolucionário de Bento XVI abriria espaço para as mudanças que ele não havia conseguido fazer durante os oito anos que ficou à frente da Igreja.
O gesto revolucionário de Bento XVI abriria espaço para as mudanças que ele não havia conseguido fazer durante os oito anos que ficou à frente da Igreja.
Ao longo do primeiro ano de pontificado, Francisco promoveu profundas
transformações dentro e fora dos muros do Vaticano.
Em poucos meses, o
novo Papa tirou a Igreja da agenda negativa em que vivia: disputa de
poder na Cúria Romana, suspeitas de fraude no Banco do Vaticano,
vazamento de documentos secretos e escândalos de pedofilia, entre outros
problemas.
Com seu estilo simples e pastoral, Francisco conquistou as
massas, aumentou a frequência nas igrejas e deu novo vigor aos fiéis.
Recentemente, ouvi do cardeal de Aparecida, dom Raymundo Damasceno,
presidente da CNBB, uma observação que me chamou atenção para definir o
pontificado de Francisco:
“As pessoas no tempo do Papa João Paulo II iam
à Roma para ver o Papa. No tempo do papa Bento XVI, as pessoas iam para
escutar o Papa Bento.
E agora as pessoas estão indo à Roma para tocar
no Papa Francisco.”
Também começo a perceber esse sentimento em relação ao Papa
Francisco.
Isso ficou claro na cobertura jornalística da primeira grande
aparição internacional do novo papa, no Rio de Janeiro, em julho,
durante a Jornada Mundial da Juventude.
Os olhos do mundo estavam em cada gesto e reação de Francisco.
E foi
durante a visita ao Brasil que o papa concedeu a primeira entrevista
exclusiva, que foi ao ar pela Globonews e pelo Fantástico, da Rede Globo
(ver vídeo abaixo).
Na longa conversa que tive com o Papa, ele antecipou as principais diretrizes do pontificado: condenou o luxo e pregou uma Igreja mais simples e acolhedora.
“Para mim é fundamental a proximidade da Igreja.
Porque a Igreja é mãe. E nem você nem eu conhecemos uma mãe por
correspondência.
A mãe… dá carinho, toca, beija, ama”, disse o Papa
Francisco, numa síntese do seu pensamento.
Foram três encontros com o jesuíta italiano Antonio Spadaro. O resultado dessa conversa foi publicado em setembro, na revista "La Civiltà Cattolica".
O texto mostra que Bergoglio não tocará na doutrina da Igreja Católica. Mas sinaliza para uma significativa mudança de tom na Santa Sé.
O Papa ressalta que a Igreja não pode ser obcecada por temas morais como a condenação ao aborto, à contracepção e ao casamento entre homossexuais.
Contra o retrato de Super-Homem
A necessidade de mudança não se refletiu apenas no tom, mas também nas ações do novo Papa. Em pouco tempo, Francisco substituiu os titulares de cargos estratégicos na Cúria Romana.
Na Congregação do Clero, saiu o cardeal conservador Mauro Piacenza e entrou o cardeal Beniamino Stella. Para a Secretaria de Estado, o papa substituiu o ex-poderoso cardeal Tarcisio Bertone pelo cardeal Pietro Parolin.
Para aprofundar o processo de reforma da Cúria, o governo da Igreja Católica, o Papa Francisco acionou o G-8, como é conhecido o conselho de oito cardeais.
Um dos primeiros resultados dos encontros foi a criação de uma comissão para proteger os menores vítimas de abusos sexuais e combater os casos de pedofilia no clero.
Recentemente, ao fazer um balanço de seu primeiro ano de pontificado, Francisco tirou a Igreja das cordas sobre esse tema, ao afirmar em entrevista ao jornal italiano “Corriere della Sera” que “ninguém tem feito mais na luta contra a pedofilia do que a Igreja Católica, que talvez seja a única instituição pública que atua com transparência e responsabilidade (sobre o assunto)”.
Nesse balanço de seu primeiro ano como Pontífice, Francisco contou ainda que não gosta da "mitologia" criada em torno dele e que considerou ofensivo um Papa ser retratado como um Super-Homem.
Além de levar a vida com extrema simplicidade, Francisco começou a cobrar o exemplo por parte dos integrantes da cúpula da Igreja.
Numa decisão surpreendente, determinou o afastamento do bispo alemão Tebartz-Van Elst.
Conhecido como “bispo de luxo” por gastar cerca de 35 milhões de euros em uma casa paroquial, ele foi obrigado a deixar a diocese por um período indeterminado.
Em outra atitude inédita, o Papa determinou que fosse enviado às paróquias de todo o mundo um amplo questionário para a preparação da Assembléia de Bispos, o sínodo sobre a família.
O questionário de 38 perguntas aborda de forma direta temas-tabu, como o casamento entre pessoas do mesmo sexo, adoção por casais homossexuais e o divórcio.
Contra a redução de católicos
Em apenas um ano, a Igreja avançou em relação ao seu maior desafio atual: estancar a queda no número de católicos praticantes.
Algumas pesquisas já apontam esse fenômeno na Europa.
O “efeito Francisco” também chegou às redes sociais. Quando assumiu, a conta do Papa no Twitter tinha 2 milhões de seguidores. No fim de outubro, atingiu a marca de 10 milhões de seguidores – um salto de 400% em sete meses.
Em dezembro, Francisco foi eleito a personalidade do ano pela revista norte-americana "Time", que ressaltou que o Papa se tornou a voz da consciência e que poucas vezes, um novo ator no cenário mundial captou tanta atenção de maneira tão rápida como fez Francisco.
Mas se de um lado Francisco teve sucesso na estratégia de atrair mais fiéis para a Igreja, por outro, já começa a enfrentar reação de setores mais conservadores, incomodados com as mudanças.
O vaticanista espanhol Juan Arias, do jornal "El País", registrou em artigo que o Papa levantou o debate sobre a situação dos divorciados na Igreja.
Mas que, em seguida, o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, cardeal Ludwing Müller, afirmou em artigo no jornal "Observatório Romano" que não se pode mudar a doutrina católica para readmitir os descasados nos sacramentos.
O gesto foi interpretado como uma referencia indireta à posição do Papa.
O cardeal Marx, arcebispo de Munique, reagiu e afirmou que Müller não poderia impedir a discussão sobre a comunhão aos divorciados.
Fora da Igreja, também há críticas, como a dos integrantes do Tea Party, grupo americano de extrema direita do Partido Republicano, que chamou Francisco de marxista.
O próprio Papa, em entrevista ao jornal italiano "La Stampa", afirmou não se sentir ofendido em ser chamado de marxista. E defendeu a doutrina social da igreja.
Reforma da Cúria
No primeiro documento escrito exclusivamente pelo novo Papa, Francisco apresentou o plano da maior reforma feita no Vaticano em pelo menos meio século ao propor a descentralização da Igreja.
Na Exortação Apostólica intitulada “A Alegria do Evangelho”, Francisco diz preferir uma Igreja ferida e suja, porque esteve nas ruas, a uma Igreja doente por estar confinada e agarrada à sua própria segurança.
Ele condenou o que define como a “globalização da indiferença” e reafirmou a “opção preferencial pelos pobres”. Ao destinar uma parte importante de seu texto à situação mundial, ele criticou o modelo econômico atual.
Em janeiro, o anúncio da primeira lista de criação de cardeais de Francisco foi um claro sinal do que ele deseja para o seu pontificado.
Dos 16 purpurados com menos de 80 anos, e que, portanto, podem votar num conclave, apenas quatro ocupam cargos na Cúria Romana e 12 são titulares de arquidioceses espalhadas pelo Mundo.
A nomeação mais surpreendente foi a do monsenhor Chibly Langlois, bispo de Les Cayes: o primeiro cardeal do Haiti. Um forte sinal de que Francisco deve usar o título de cardeal para fortalecer a posição de prelados da Igreja em países periféricos e que enfrentam dificuldades políticas e socais.
Para a América Latina, além do Haiti, o Papa Francisco fez questão de indicar com as primeiras nomeações prelados próximos e de sua confiança, como dom Orani Tempesta, no Rio, e o sucessor dele em Buenos Aires, o arcebispo Mario Aurelio Poli.
Nessa primeira lista, chama atenção a ausência da nomeação de cardeais de sedes tradicionais, como a do patriarcado de Veneza ou do arcebispado de Turim.
Ao invés de favorecer nomes da Cúria e da Itália, Francisco aprofundou a estratégia de universalização da Igreja.
Um destaque especial para a lista foi a nomeação de Loris Capovilla, de 98 anos, que foi secretário do Papa João XXIII.
Apesar de não poder votar num conclave por causa da idade, a escolha de Capovilla foi uma homenagem e um símbolo de que Francisco quer resgatar a importância do pontificado de João XXIII, responsável por convocar o Concílio Vaticano II.
Esse, talvez, será o grande desafio de Francisco para os próximos anos: abrir caminhos e quebrar resistências em todos os níveis da Igreja Católica para conseguir implementar suas mudanças e retomar o concílio.
Para um observador distante, os passos de Francisco podem ser lentos. Mas para os padrões da Santa Sé, a velocidade dessas transformações em tão pouco tempo é algo sem precedentes nas últimas décadas.
Mesmo assim, já é consenso dentro dos muros do Vaticano que muitas das mudanças sugeridas só devem ser adotadas nos futuros pontificados. Afinal, esse é o tempo da Igreja.
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