Hoje, a linha da pobreza efetiva deve ser determinada por quem tem e por quem não tem acesso aos bens e serviços essenciais. E neste sentido, o Brasil não está avançando na educação, na saúde, no transporte e na segurança.
O
Brasil passou a acreditar que 22 milhões de brasileiros teriam saído da
pobreza extrema. Este discurso se baseava na ideia de que estas
famílias passaram a receber complemento de renda suficiente para
ultrapassar a linha de R$ 70 por pessoa por mês. Esta visão aritmética
não resiste a uma análise social que efetivamente cuide da pobreza.
Nada indica que uma família sem adequada provisão de escola, saúde,
cultura, segurança, moradia, água e esgoto saia da pobreza apenas porque
pode comprar aproximadamente oito pães por pessoa a cada dia.
A linha da pobreza não deve ser horizontal, separando quem tem mais de
R$ 2,33 por dia e quem não tem, mas uma linha vertical, separando quem
tem e quem não tem acesso aos bens e serviços essenciais.
É como se, na época da escravidão, o povo fosse convencido de que o
país era menos escravocrata apenas porque o proprietário gastava mais
dinheiro na alimentação de seus escravos. A separação entre o escravo e o
trabalhador livre não era uma linha horizontal definida aritmeticamente
pela quantidade de comida que recebia, mas uma linha vertical separando
quem tinha e quem não tinha liberdade...
Hoje, a linha da pobreza efetiva deve ser determinada por quem tem e
por quem não tem acesso aos bens e serviços essenciais. E neste sentido,
o Brasil não está avançando na educação, na saúde, no transporte e na
segurança.
Mesmo dentro de sua lógica, o argumento aritmético fica frágil quando
se observa como a renda dos pobres avança e regride dependendo da
inflação. Entre março de 2011 e abril deste ano, a inflação medida pelo
INPC foi de aproximadamente 19,6%, fazendo com que cerca de três milhões
de brasileiros tenham regredido abaixo da linha aritmética da pobreza
extrema. Mesmo com o aumento de 10%, anunciado dia 1º de maio, 1,5
milhão de pessoas regrediram abaixo dessa linha.
Outra forma de ver a fragilidade do argumento aritmético está na
dependência em relação ao valor do câmbio. Pela paridade do poder de
compra, em março de 2011, o benefício básico do Bolsa Família era
equivalente a US$ 1,25 por pessoa, por dia, valor adotado pela ONU como
abaixo da linha da qual se caracteriza a pobreza extrema.
Com a desvalorização cambial, houve uma perda de poder aquisitivo de
aproximadamente 20%. Portanto, cerca de quatro milhões de brasileiros
estão de volta à pobreza (mesmo considerando o aumento de 10%).
Pelo conceito social, não aritmético, de pobreza, considerando acesso à
saúde, à educação e ao transporte de qualidade, o Brasil tem hoje pelo
menos 22 milhões de brasileiros abaixo da linha da pobreza extrema,
número que não diminuiu nestes últimos anos.
Cento e trinta e seis anos atrás, o Brasil não aumentou a quantidade de
comida nos pratos dos escravos, fez a Lei Áurea que os libertou. A Lei
Áurea não foi um argumento aritmético, mas social. Por isso, ela se fez
permanente, e nós a comemoramos nesta semana sem recaídas ocasionadas
pela inflação ou pelo câmbio, sem a pobreza aritmética.
Cristovam Buarque é senador (PDT-DF).
Fonte: CRISTOVAM BUARQUE - 18/05/2014 - - 13:13:48 BLOG do SOMBRA
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