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Por Denis Lerrer Rosenfield
O candidato Lula, em sua primeira disputa vitoriosa à Presidência da República, procurou distanciar-se das posições mais à esquerda de seu partido, divulgando uma carta, a “Carta ao povo brasileiro”, que balizou as posições que viria a tomar se eleito. Sabia que, se mantivesse a doutrina tradicional petista, anticapitalista e socializante, certamente iria perder novamente as eleições. Do ponto de vista do espectro político, aproximou-se do centro, capturando a simpatia de empresários e de uma classe média até então refratária ao PT. O movimento foi inteligente e o seu resultado foi o sucesso.
Ocorre, contudo,
que o PT não tornou a “Carta ao povo brasileiro” um documento partidário, o que
o teria obrigado a uma revisão doutrinária, optando pela social-democracia e
distanciando-se de posições revolucionárias. Em vez de uma revisão doutrinária
necessária, a escolha recaiu na inércia, na omissão e, na verdade, na
esquizofrenia.
A esquizofrenia
teve todo o caminho aberto para se desenvolver. O governo petista de Lula,
sobretudo em seu primeiro mandato, fez uma escolha, de fato, pela
social-democracia, com matizes liberais. O nome social-democracia permaneceu,
porém, no nível partidário, um nome feio por designar o seu principal
adversário. Entretanto, a prática de governar pouco tinha a ver com a doutrina
partidária. Poderíamos, inclusive, dizer, com Antonio Palocci, no Ministério da
Fazenda, e Henrique Meirelles, no Banco Central, que a política macroeconômica
era “neoliberal”.
O PT perdeu
substância do ponto de vista doutrinário, porém ganhou poder implantando-se
fortemente no aparelho de Estado. Passou a ser uma máquina eficiente na
conquista eleitoral, aproveitando-se da política social de seu governo, de
corte social-democrata, personificada no Bolsa Família, na política de aumento
do salário-mínimo e em outras formas distributivistas. A prática era uma; a
teoria, outra.
O governo Dilma
seguiu essa mesma política social-democrata, com as tinturas de um maior
intervencionismo estatal na área econômica, já presentes no segundo mandato de
Lula. Diria, mesmo, que se distinguiu de seu antecessor por uma política social
muito mais responsável ao procurar a resolução e o equacionamento de conflitos
sociais, em vez de potencializá-los.
Isto é
particularmente visível em sua relação com o agronegócio, tornado um parceiro
na condução dos assuntos do país. A CNA, presidida pela senadora Kátia Abreu,
estabeleceu um diálogo com a Presidência, extremamente profícuo para o Brasil
como um todo. A insegurança jurídica no campo teve uma substancial redução.
A reforma agrária,
por sua vez, sofreu uma mudança de foco, passando a centrar-se na qualificação
dos assentamentos, de modo a estes não se tornarem favelas rurais. A ênfase foi
posta na formação técnica, na produtividade, de modo que os assentados possam
se tornar agricultores familiares voltados para uma economia de mercado. A
transformação foi importante.
Outro ponto que
merece destaque foi sua política em relação aos meios de comunicação, não
aceitando, por princípio, nenhuma forma de controle dos mesmos, em uma defesa
resoluta da liberdade de imprensa. Sua é a expressão de que o único controle
que admitia era o controle remoto dos aparelhos de televisão. Engavetou,
inclusive, um projeto deixado por seu antecessor de “controle social dos meios
de comunicação” ou de “democratização dos meios de comunicação”, conforme se
queira dizer, para melhor encobrir formas propostas de censura.
Nestes dois pontos,
o seu distanciamento com as formulações doutrinárias do PT só se acentuou. A
eleição, contudo, está levando a uma aproximação com posições partidárias que
contradizem a própria prática petista de governar nesses últimos anos. Em vez
de retomar e aprofundar uma “Carta ao povo brasileiro”, que deveria ser um
documento partidário, a presidente e o PT estão, em sua estratégia política,
formulando praticamente uma “Carta aos petistas”. A presidente afasta-se de sua
própria prática de governo e o PT retoma as suas posições doutrinárias
tradicionais. A esquizofrenia ganha novos contornos.
Explico-me. Há um
texto implícito na atual estratégia que merece a denominação de “Carta aos
petistas”. Ela está voltada principalmente para o seu público interno. Em
contradição explícita com a política do governo Dilma até aqui, ela se
caracteriza, entre outros quesitos: a) pela recuperação da política de
“democratização dos meios de comunicação”, com o objetivo de controle destes
mesmos meios, que estariam fazendo o “papel das oposições”, o jogo dos
“conservadores”; b) pela retomada da interlocução com os ditos “movimentos
sociais”, em particular o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), braço
urbano do MST, agora voltado contra a “especulação imobiliária”; c) pela aposta
na fratura social e política por intermédio do discurso que tinha sido
enfraquecido dos “ricos” contra os “pobres”, em um jogo canhestro de
reafirmação da “luta de classes”; d) pela racialização da política, tornando o
xingamento em um estádio a manifestação de uma “elite branca”.
É como se o partido
e a presidente estivessem voltando a sua atenção, não para o eleitor em geral,
mas para os simpatizantes e militantes petistas. É um discurso “intramuros”,
procurando recolher o rebanho perdido. Convém ressaltar que a “Carta ao povo
brasileiro” era “extramuros”. Trata-se, atualmente, de uma política de
resistência, própria de um partido acuado, e não de um governo que completa 12
anos. Na experiência petista do Rio Grande do Sul aparecia que, quando o
discurso eleitoral era dirigido para dentro do partido, este perdia a eleição.
Quando se voltava para fora, as suas chances de sucesso eram grandes.
A atual estratégia
eleitoral petista mais parece a de um partido que se prepara para ser oposição,
do que a de um governo que deveria apresentar os resultados de seus três
mandatos de exercício do poder.
Qual é a Carta que
vale?
Denis Lerrer
Rosenfield é professor de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul. Originalmente publicado na coluna dele, em O Globo, em 30 de Junho de
2014.
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