Em sua coluna
de hoje no GLOBO, João Ubaldo Ribeiro toca no ponto-chave da questão
racial moderna: não existe uma “raça negra”, nem sequer uma “Mãe
África”, uma visão de pan-africanismo que trata todos os africanos como
“irmãos”. Há muito racismo nessa visão.
Da mesma forma que não existe “o branco”,
e todos vemos as várias diferenças entre os europeus, não há “o negro”,
que joga todos os africanos no mesmo grupo.
O escritor lembra, ainda, que a
escravidão jamais fez distinção por cor ou raça; era um recurso do
vencedor sobre o vencido, independentemente da “raça”. Negros foram
escravos de negros, e alguns ainda são na África. Diz:
Começa pela
ligação, que aqui sempre se faz, entre escravidão e raça. Falou, em
escravos, falou em negros. Mas a maior parte dos escravos na história da
humanidade não era de negros, o que lá seja isto. A escravidão, para
generalizar razoavelmente, era o destino dos vencidos de qualquer raça,
que não fossem exterminados. Inclusive, é claro, pois do contrário é que
não seriam humanos, os da raça negra vencidos por outros da mesma raça,
caso dos escravos vendidos ao Brasil.
É comum a
noção de que “negro é negro”, como se as incontáveis etnias negras se
considerassem iguais. Isso equivale a entender que um alemão é igual a
um polonês, um sueco igual a um italiano ou um espanhol igual a um
russo. Não pode haver disparate maior – e, se bem olhado, racista – do
que achar que, num continente gigantesco e diversificado como a África,
todos os negros são iguais e, mais bobamente ainda, irmãos. Irmãos em
Cristo e, assim mesmo, se não forem muçulmanos. Vão perguntar se as
minorias negras massacradas por nações também negras se consideram irmãs
de seus algozes, ou estes daquelas. Ou aos escravos negros de outros
negros, situação até hoje existente na África. Há até quem se
escandalize com guerras e genocídios entre nações negras. Ué, e guerra
de branco contra branco?
Tudo isso me remeteu a uma resenha que
escrevi de um ótimo livro de Kwame Appiah para a revista Banco de
Ideias, do Instituto Liberal. Segue abaixo:
Pan-africanismo sem racismo
“Muitas sociedades africanas têm tanto em comum com as sociedades tradicionais não africanas quanto entre si.” (Kwame Appiah)
No afã de
resgatar um suposto “orgulho negro” contra o racismo histórico, muitos
têm insistido num mito que pode vir a ser perigoso: a idéia de um
pan-africanismo sustentado pela identidade racial. Para qualquer um
interessado no assunto – e acredito que todos deveriam estar, pelos
riscos envolvidos –, a leitura de Na Casa de Meu Pai, do filósofo Kwame Anthony Appiah, é altamente indicada.
Filho de pai
ganês e de mãe inglesa, Appiah está numa posição privilegiada para
tratar do tema em questão. Ainda assim, é submetendo os argumentos à luz
da razão que ele pretende demonstrar como o racialismo tem sido
prejudicial aos próprios africanos. Por trás da noção de pan-africanismo
jaz o pressuposto de unidade política natural dos diferentes povos
africanos. A Mãe África acaba sendo vista como berço da “raça” negra, de
forma um tanto monolítica, ignorando as inúmeras diversidades dentro do
continente. Para o autor, “os povos da África têm muito menos em comum,
culturalmente, do que se costuma supor”.
Para Appiah,
um dos primeiros legados incômodos desta visão falsa é a associação
entre a opinião negativa ocidental em relação à África com a questão
racial. A África, local de extrema miséria e palco de desgraças humanas
infindáveis, ajuda a disseminar uma opinião negativa sobre os negros,
resultado, em parte, do racialismo dos próprios defensores do
pan-africanismo, normalmente cidadãos negros “exilados” no Novo Mundo, e
criados na cultura ocidental.
A
importância da cultura é muito maior que a da “raça”, eis o que sustenta
Appiah. A África não é um lugar homogêneo, mas os africanos podem
aprender uns com os outros, “tal como podemos, é claro, aprender com
toda a humanidade”. O intercâmbio cultural e a crítica racional podem
beneficiar todas as culturas, ajudar a “ensinar à raça única a que todos pertencemos”.
A mentalidade coletivista de pensadores como Du Bois, que enxergaram a
história como história de raças, comete o mesmo tipo de erro dos
marxistas, que viram a história como história de classes. O simplismo e a
arbitrariedade destes conceitos anulam qualquer realismo da análise.
Falar de
“raça”, para Appiah, é “particularmente desolador para aqueles de nós
que levamos a cultura a sério”. Além disso, o autor mostra como a
ideologia do pan-africanismo depende justamente de traços culturais
ocidentais: “A nostalgia nativista, em suma, é basicamente impulsionada
pelo sentimentalismo ocidental que nos é tão familiar desde Rousseau;
poucas coisas, portanto, são menos nativas do que o nativismo em suas
formas atuais”. O pan-africanismo centrado na idéia de raça não passa de
uma invenção não-africana.
Apesar de a
fase do pré-colonialismo africano ser caracterizado pela ausência de
algo como uma identidade africana, Appiah reconhece que começa a surgir
tal fenômeno, como construção histórica. Mas, para o autor, sustentar
tal identidade com base na idéia falsa de “raça” é perigoso. A “raça”,
segundo ele, “nos incapacita porque propõe como base para a ação comum a
ilusão de que as pessoas negras (e brancas e amarelas) são
fundamentalmente aliadas por natureza e, portanto, sem esforço; ela nos
deixa despreparados, por conseguinte, para lidar com os conflitos
‘intra-raciais’ que nascem das situações muito diferentes dos negros (e
brancos e amarelos) nas diversas partes da economia e do mundo”.
Temos
inúmeras identidades distintas, como “tribo”, religião, etc. As
identidades são complexas e múltiplas. Usar somente uma delas como
preponderante, e ainda por cima a racial, representa um grave erro. É
possível defender o pan-africanismo sem o racismo. O projeto de um
nacionalismo negro racializado vai contra a idéia moderna – e mais
racional – de direitos individuais e humanos.
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