quarta-feira, 4 de junho de 2014

Esquartejamento do zelador domesticou o horror


Josias de Souza
No crime convencional, o assassino mata porque deseja alguma coisa que a vítima possui —o dinheiro, o carro, a relógio, o colar… Eduardo Martins, o publicitário que confessou ter esquartejado o zelador Jezi Souza, não matou para roubar algo. Sua vítima tinha menos coisas do que ele.

Num latrocínio, o criminoso invade a casa da vítima e mata depois de assaltar. Num sequestro seguido de morte, a vítima costuma ser recolhida na rua e executada no cativeiro. Ou num matagal ermo. Ou numa gruta distante. O publicitário Eduardo assassinou o zelador Jezi na sala do seu apartamento.

No filme Silêncio dos Inocentes, o canibal Hannibal Lecter, magistralmente encarnado por Anthony Hopkins, desejava suas vítimas. Depois de degustar o medo que ateava nelas, ele se alimentava de pedaços dos seus cadáveres. Na não-ficção de São Paulo, o publicitário tratou o corpo do zelador como um estorvo.

Para a polícia, Eduardo matou Jezi com requintes de crueldade. O problema é que não há na confissão do publicitário indícios de que ele tenha sentido prazer com o pânico da vítima. “Fiquei sem saber o que fazer”, disse. “Foi quando decidi cortar ele.”

No crime convencional, o assassino tenta apagar os vestígios. Eduardo Martins revelou-se uma caricatura imbuída do propósito inconsciente de desnudar-se, como quem desvenda um assassinato cometendo-o com transparência. “Enrolei num cobertor e coloquei dentro da mala”, relatou o publicitário, com secura prática.

Depois, desfilando para as mesmas câmeras que haviam testemunhado os últimos passos do zelador Jezi, Eduardo entrou com a mala no elevador. Desceu até a garagem. Numa domesticação hedionda do horror, levou o cadáver da sala do seu apartamento para a casa litorânea do pai.

Quando a polícia o encontrou, o publicitário incinerava os pedaços do zelador na churrasqueira da casa. Por que esquartejou o morto? “Não tinha o que fazer.” Como cortou? “Com o serrote”. No banheiro? Sim, “eu forrei as paredes para não respingar sangue.”


O diabólico vírus da brutalidade esconde-se nos lugares mais improváveis. Tão insuspeitos como o apartamento de classe média que o publicitário Eduardo dividia com um filho e a mulher advogada. Quem poderia supor que as discussões do morador com o zelador do prédio terminariam num sangrento surto de irracionalidade?


Autoproclamado ‘herege de todas as religiões’, o genial poeta gaúcho Mario Quintana indagou num de seus escritos: ‘Mas quem sabe se o diabo não será o mister Hyde de Deus?’ Uma interrogação puxa outra: se nem Ele está a salvo da desconfiança, quem estará? Ninguém, ninguém.


Se a execução banal do zelador Jezi sinaliza alguma coisa é o seguinte: num Brasil sem balizas, em que a anormalidade tornou-se normal, ficou difícil distinguir o bem do mal. No crime convencional, o monstro é pobre e mora no gueto. No crime do condomínio, médico e monstro vivem sob a mesma pele, no apartamento ao lado.


Um dos crimes de Eduardo Martins foi invadir a vida anormal do Brasil com sua louca normalidade. Antes, os crimes tinham começo meio e fim. Ao trucidar o zelador, o publicitário interrompeu o começo. Todos sabem o que se passou no meio. Ninguém ignora o fim. Mas como tudo começou?


O mal, quando é excessivamente banal, só é chamado de mal por falta de outro nome. A crise brasileira é sobretudo de semântica. Devagarinho, o país vai se desobrigando de fazer sentido.


Editoria de Arte/Folha

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