Fernanda D. Abra* - 30/06/14
Macho
adulto de Lontra (Lutra longicaudis) atropelado em Rodovia do Centro
Oeste Paulista. Foto: Fernanda D. Abra.
"Roads are seeds of tropical forest destruction".
(Estradas são as sementes da destruição da floresta tropical.)
Thomas Lovejoy
Desde a primeira vez que ouvi esta frase em uma palestra
entendi que uma recém-proposta disciplina, a Ecologia de Rodovias, ramo da
grande Ecologia, seria bastante aplicável no Brasil, pois, entre tantas coisas
trazidas da América do Norte e Europa, o Brasil adotou o Sistema Rodoviário
como o principal modal de transporte para o desenvolvimento socioeconômico do
país.
A origem das Rodovias no Brasil se deve ao slogan de
campanha "Governar é abrir estradas" de Washington Luís – o
estradeiro – que em 1920 utilizou esta marca em sua campanha para Governador do
Estado de São Paulo (1920 – 1924) e posteriormente para Presidente da República
(1926 - 1930).
Durante suas gestões, foi responsável por grandes marcos no
desenvolvimento do modal rodoviário no país, mas principalmente no Estado de
São Paulo. Seus próximos cinco sucessores do governo paulista perpetuaram a abertura
de estradas e rodovias durante suas gestões, com destaque a importantes obras
interligando cidades do interior paulista.
A década de 1930 foi marcante pelo surgimento de importantes
rodovias, como a Rio-São Paulo, Rio-Petrópolis e Itaipava-Teresópolis. Estas
marcaram o início da implantação de uma malha rodoviária moderna no país, que
ganharia impulso nas décadas seguintes, espelhando-se em exemplos de países com
economias bem sucedidas, como as autobahns alemãs e highways norte americanas
que escoavam mais facilmente seus produtos, barateavam mercadorias e integravam
cidades.
Ao mesmo tempo em que nas décadas de 1920 e 30 foram abertas
as primeiras estradas e rodovias¹ brasileiras, nos Estados Unidos da América,
foram publicados os primeiros artigos científicos sobre impactos destes
empreendimentos sobre o meio ambiente natural – um abismo temporal no
conhecimento teórico e aplicado sobre o assunto. Estes estudos apontavam uma
grande perda de biodiversidade causada pelo atropelamento de animais silvestres
na malha rodoviária do país².
Pesquisadores de países desenvolvidos começaram a reconhecer
impactos ambientais decorrentes da implantação e operação das rodovias – como
citado por Willian Laurence, "estava aberta a caixa de pandora".
Danos generalizados
Da mesma forma que na mitologia grega, a abertura da caixa
libertou – ou melhor, escancarou – todos os males do mundo, a implantação de
Rodovias afeta direta ou indiretamente a integridade biótica, causando danos
significativos. Estes incluem a dispersão de espécies invasoras por meio dos
corredores lineares, alterações de ciclos hidrológicos devido a interrupções na
drenagem, mudanças microclimáticas devido à pavimentação – que tende a aumentar
as temperaturas locais e diminuir a umidade do ar – poluição atmosférica devida
à produção de gases tóxicos e material particulado, produção de ruído,
contaminação das águas e do solo, perda e degradação de habitats e fragmentação
de ambientes naturais.
Especificamente para a fauna silvestre, há dois impactos principais:
a perda de espécies por atropelamento, que é direto, visível e mensurável por
conta das carcaças presentes em faixas de rolamentos e acostamentos, e o efeito
barreira, um impacto indireto e não mensurável que resulta do não encorajamento
dos indivíduos em atravessar rodovias, consequentemente trazendo problemas
relativos ao isolamento e perda de variabilidade genética, eventualmente
ocasionando extinções locais e regionais.
Países como Estados Unidos e Canadá, e da União Europeia,
possuem um robusto acervo de estudos, de longo prazo inclusive, monitorando
animais em rodovias. Estes produziram estimativas assombrosas, como 1 milhão de
vertebrados terrestres sendo atropelados diariamente na malha rodoviária dos
Estados Unidos, um dado perturbador mas justificável pela alta densidade de
rodovias e animais do país.
Mas, e no Brasil? Sendo a Ecologia de Rodovias uma
disciplina tão recente e ainda com poucos estudos conclusivos por aqui, o que
está acontecendo com a nossa fauna desde o slogan retumbante do Presidente
Washington Luis? Quais espécies são as mais afetadas? Os atropelamentos ocorrem
mais com a fauna generalista porque são mais encorajadas a atravessar as
rodovias? E as espécies especialistas, as essencialmente florestais, que evitam
rodovias e ficam isoladas, separadas por 20-40 metros de plataforma
pavimentada? Qual a viabilidade populacional de algumas espécies afetadas por
rodovias seja por quaisquer dos impactos citados? O que acontecerá com o lobo
guará, a onça parda, uma vez que, p. ex. para algumas rodovias paulistas é
conhecida a significativa perda de indivíduos por atropelamento?
Estas questões são importantes não só pela dimensão da malha
rodoviária brasileira, mas também porque rodovias já impactam áreas protegidas
únicas. Por exemplo, o Parque Estadual do Morro do Diabo é cortado pela SP-613,
enquanto as Reservas Biológicas de Sooretama (ES) e União (RJ) o são pela BR
101.
Mais que isso, a proposta para reabertura da Estrada do
Colono, no Parque Nacional do Iguaçu (PR) mostra como a ciência ainda passa
longe das políticas públicas, uma simples inclusão do termo
"estrada-parque" na Lei do SNUC – Sistema Nacional de Unidades de
Conservação, "resolve" todos os problemas e impactos ambientais de
uma estrada dentro da área inatingível de um Parque Nacional, simples assim.
Segurança em risco
Exemplo de
passagem inferior de fauna em Rodovia do Centro Oeste Paulista. Foto: Fernanda
D. Abra
Além da necessidade de estudos e diagnósticos, temos
problemas recorrentes com fauna silvestre e doméstica, todos os dias nas nossas
rodovias, os animais adentram as faixas de rolamento, colocando em risco a
segurança do usuário. Este é um erro grave tanto da administração pública como
privada de Rodovias, e é neste aspecto que há possibilidades de tomadas de
decisões efetivas em relação à implantação de medidas mitigadoras para
atropelamentos: a segurança do usuário. A administração rodoviária está
preocupada, acima de tudo, em diminuir acidentes.
A pesquisa científica gerou diversas medidas de mitigação,
como as passagens de fauna inferiores e superiores, cercas, placas de
sinalização, redutores de velocidade físicos e eletrônicos, sistemas de
detecção animal e várias práticas de conserva da própria rodovia que colaboram
para evitar atropelamentos e reestabelecer a conectividade estrutural e
funcional entre ambientes cortados por empreendimentos rodoviários.
Com certeza tais medidas, muitas delas trazidas de outros
países, deverão ser aos poucos ajustadas para cada grupo faunístico específico
e para cada bioma brasileiro. Com quase um século de pesquisas, o profissional
da conservação e os engenheiros rodoviários brasileiros não precisam inventar a
roda, eles somente devem ajustá-la e inová-la, quando necessário.
Apesar dos problemas relatados, ainda temos um freio
cultural. De forma geral, os profissionais da conservação, principalmente, tem
tanto medo de testar, errar e de ser criticado que, no fim das contas (uma
conta cara por sinal), o argumento de "não fazer" baseado na falta de
publicações, insuficiência de dados e validações estatísticas é maior do que o
fato real de que "a nossa biodiversidade está se esvaindo no
asfalto". Isso é difícil de ser compreendido uma vez que no universo da
Ecologia de Rodovias, novos conhecimentos devem ser aplicados, testados e
ajustados, como em um ciclo virtuoso, até que se atinja o objetivo planejado.
É recorrente iniciar um assunto sobre medidas de mitigação
para atropelamentos e ouvir: "mas e os predadores que vão ficar
espreitando e predando animais dentro das passagens de fauna? Li um relato de
uma onça parda comendo tatus nessas passagens!" - como se isso – se e
quando ocorre – justificasse não implantar as estruturas e fosse pior que
deixá-las sendo atropeladas e causando acidentes.
Rodovias
cortam ambientes naturais. Foto: Pedro Zílio
"Os custos de implantação de cercas e passagens oneram
muito a obra." Pois é, e quantos anos uma rodovia permanece na paisagem? É
uma cicatriz permanente que impacta a fauna desde a sua implantação até quanto
durar a sua operação. Implantação de medidas de mitigação não é um luxo
exclusivo de grandes obras rodoviárias ou rodovias concessionadas, elas são
urgentes, necessárias e na verdade oneram, no máximo, uma casa decimal do valor
total do empreendimento.
Estudos sobre o custo benefício da implantação de medidas
mitigatórias para atropelamentos mostram que os empreendedores poupam dinheiro
com a diminuição de acidentes³, pois nesses casos eles devem,
impreterivelmente, indenizar os usuários.
A única certeza que temos é que "governar é abrir
estradas" está arraigado nas nossas gestões públicas nos âmbitos federais
e estaduais. Em pleno século XXI, frequentemente testemunhamos a abertura de
novas rodovias e, principalmente obras de duplicações, ampliando, sobremaneira,
o avanço do pavimento impermeável nas áreas naturais do nosso país. Enquanto
isso, pessoas e animais morrem todos os dias em acidentes rodoviários
perfeitamente evitáveis.
Existe uma
grande perda de indivíduos de onças parda por atropelamentos. Foto: Fábio
Maffei
1. O nome "Ecologia de Estradas" é a tradução
exata do inglês Road Ecology.
Entretanto, o Código Brasileiro de Trânsito
diferencia "estrada" de "rodovia". Estrada é classificada
como uma via rural sem pavimentação, enquanto que a rodovia é necessariamente
uma via rural pavimentada. Dessa forma, o termo "Ecologia de Rodovia"
é mais bem empregado para tratar das vias principais e secundárias no âmbito
municipal, estadual e federal e é com base nessas rodovias que a maioria dos
estudos sobre atropelamento de fauna silvestre e implantação e monitoramento de
medidas de mitigação são realizados.
2. STONER, D., 1925. The toll of automobile. Science 61, 56-58.
3. HUIJSER, M.P., ABRA, F.D., DUFFIELD, J.W., 2013. Mammal road mortality and cost benefit analyses of mitigation measures aimed at reducing collisions with Capybara (Hydrochoerus hydrochaeris) in São Paulo State, Brazil. Oecologia Australis, 17: 129-146.
Nenhum comentário:
Postar um comentário