Artigo no Alerta Total – www.alertatotal.net
Por Hugo Silva
Este
texto foi escrito como uma resposta ao texto de Erick Vizolli no Liberzone, que
trata de um decreto da Presidência da República que vem causando diversas reações.
Não queremos defender o decreto de seus críticos, mas sim tecer comentários
sobre as críticas feitas naquele texto. Logo, este artigo é muito mais um
exercício de análise (especialmente jurídica e histórica) do que de opinião.
Desde logo, advirto
que me abstenho de comentar a comparação da situação brasileira com a situação
russa no início do século passado, bem como as linhas sobre Estado – no início
do texto – e democracia, política e minorias, que compõem o final do artigo.
Isso tornaria este trabalho imenso e enfadonho, além de fugir do seu tema.
Vizolli principia
por esclarecer o que é um decreto. Entretanto, esquece de falar da existência
da figura do “decreto autônomo” em nosso ordenamento jurídico, incluído pela
Emenda Constitucional 32 de 2001. Essa espécie de decreto não detalha lei
alguma (logo, não ésecundum
legem),
estando hierarquicamente subordinada diretamente à Constituição. Trata-se de
função legislativa do poder Executivo, podendo, inclusive, revogar leis (não
qualquer lei, mas aquelas anteriores à emenda que dispunham sobre matérias
agora de competência exclusiva do Executivo). Assim, podemos dizer que a EC
32/01 “recepcionou” aquelas leis sobre organização interna da administração
pública federal como decretos autônomos.
Desta forma, o
poder Executivo, nos casos elencados pela emenda (art. 84, VI, a e b), estará
legislando por conta própria. E não haverá (há) nada de errado com isso. Não
estaremos numa ditadura porque o Executivo baixou um decreto nos exatos termos
da sua competência definida na Constituição. Inclusive, para mostrar a
diferença dessa espécie de decreto para as outras, e de outro modo, o
Legislativo não poderá criar lei que trate da organização interna da
administração pública federal, vez que a Constituição reservou tal matéria à
competência legislativa do Executivo Federal.
Dito isso, temos
que analisar a afirmação do autor de que o Decreto 8243 “integra” à
Administração Pública “vários órgãos novos”. Isto é, temos que analisar o exato
sentido dos limites ao Legislativo exercido pelo Executivo quando da edição de
decretos autônomos. Ao vedar a “criação ou extinção de órgãos públicos”, a
Constituição refere-se apenas aqueles órgãos independentes e autônomos. Criar
ou extinguir estruturas internas nos ministérios – ou criar grupos de trabalho,
comissões e conselhos – não viola o texto constitucional, ao contrário do que
diz Vizolli. Por exemplo, a criação de uma assessoria de comunicação social em
um dado ministério é possível por meio de decreto. Assim, não há
inconstitucionalidade no artigo 19 do Decreto 8243.
O autor passa,
então, à crítica da definição de sociedade civil no Decreto. Aqui, embora eu
não concorde com as razões que o autor apresenta para excluir “cidadão” do
conceito de sociedade civil (existência do direito de petição), concordo que o
artigo 2º, I é mal escrito. Digo até mais, todo o artigo 2º é exemplo de
péssima técnica legislativa. Mas por outras razões que as apontadas por
Vizolli: não vejo problemas na participação de movimentos sociais
institucionalizados; vejo problemas na necessidade de definições.
Um texto normativo
deve evitar a definição de conceitos porque isso, em primeiro lugar, restringe
a aplicação do texto, e, em segundo lugar, faz com que o texto fique datado com
o tempo, já que não pode acompanhar a imensa novidade da vida. Ao definir o que
é sociedade civil, o Decreto pode impedir a participação de outros grupos que
não se definam como “coletivos, movimentos sociais institucionalizados ou não
institucionalizados”. Na verdade, concordo plenamente com o autor nas suas
críticas à vagueza e à linguagem truncada do Decreto.
Em seguida, ao
analisar os “mecanismos de participação social”, o autor vai além do que diz o
Decreto ao afirmar que os órgãos da administração pública federal “deverão
formular seus programas em atenção ao que os tais ‘mecanismos de participação
social’ demandarem”. Aqui, ele ignora que é exatamente por ser vago que o
Decreto não passa de uma espécie de carta de intenções ou, até melhor, de uma
enganação. Isso porque seu texto é repleto de exceções e de sutilezas, como:
“respeitadas as especificidades de cada caso”, ou “deverão considerar”.
Logo, se é certo
que o Decreto possibilita a inserção de movimentos sociais organizados nos
órgãos da administração pública federal, ele traz no seu corpo as
justificativas para que isso não seja feito em áreas sensíveis ou importantes
(“respeitadas as especificidades de cada caso”). Ao mesmo tempo, ao dar mero
papel consultivo aos “mecanismos”, torna-os eminências pardas: estão lá, são
vistos, falam, mas nada decidem.
Nada como os
sovietes, que possuíam poder deliberativo e executivo (embora, como
acertadamente diz o autor, concentrados em uma restrita cúpula), além de grande
influência na sociedade russa (coisa que os ditos “movimentos sociais” não têm
– como reconhece o próprio Vizolli). Para mim, parecem muito mais com o
Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional (CR, arts. 89-91):
meramente decorativos.
Assim, o Decreto
8243 não me parece o apocalipse que estão pintando. Parece muito mais uma
tentativa de cooptação do movimento social organizado pelo governo, tentando
trazê-lo para sua tutela para evitar greves, manifestações, invasões etc.
Hugo Silva é Bacharel em Direito pela UFPR,
com mestrado em Filosofia pela mesma instituição. Originalmente publicado no
blog Amálgama, em 4 de junho de 2014.
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