Favelas e cracolândias que ninguém vê
Voz da Barra
- sábado, 7 de junho de 2014
O
que favelas e cracolândias têm em comum? Ambas sofrem do mesmo mal: são
definidas usualmente por meio de estereótipos e transformadas em bodes
expiatórios, em escudos contra a assunção de responsabilidades diante de
problemas sociais que não se quer enfrentar. Mais do que isso, visões
preconceituosas das favelas e cracolândias acabam autorizando formas
desrespeitosas e truculentas de lidar com as pessoas que habitam esses
espaços.
No caso das favelas e periferias das grandes
cidades, a imagem corrente é de moradias inacabadas e condições urbanas
precárias, onde prevalecem a miséria, a ilegalidade e a violência.
Enxergar as favelas apenas dessa perspectiva significa ignorar o
universo social e cultural produzido por seus moradores, a vida
pulsante que corre diariamente por suas ruas e vielas, a rede de
sociabilidade e solidariedade ali construída. Significa ignorar uma
história de organizações e de lutas, e tudo o que os moradores de
favelas representaram e representam para a construção do país.
Com relação às cracolândias, existe a crença
generalizada de que são espaços povoados por “zumbis”, por pessoas de
comportamento imprevisível, violento e repugnante, por autômatos guiados
unicamente pelo desejo da droga, sem capacidade de discernimento. No
entanto, basta ter a coragem de visitar uma cracolândia real, como
fizemos numa das favelas do Complexo da Maré, para enxergar sujeitos
usando crack, sim, ingerindo bebidas alcoólicas e eventualmente
brigando, mas também compartilhando alimento, afeto e solidariedade.
Homens e mulheres cujas vidas viraram de cabeça para baixo num piscar de
olhos: perda de emprego, desestruturação familiar, abandono. E que
encontraram nas ruas, entre os usuários de crack, o apoio necessário
para sobreviver. Ao contrário do que se acredita comumente, muitos
desses indivíduos não chegaram ali por causa do crack, e sim por
numerosos outros motivos pessoais, econômicos e sociais. O crack é o que
hoje lhes proporciona os poucos momentos de prazer que ainda têm na
vida.
Vimos na cracolândia algumas dezenas de
pessoas miseráveis, morando em minibarracos improvisados e cercados de
montes de lixo, sem a atenção dos mais elementares serviços públicos.
Mas, mesmo assim, capazes de construir arranjos de convivência e de
auxílio mútuo, de refletir sobre suas histórias e sua situação atual, de
tomar decisões e de formular demandas.
Nada disso implica negar a existência dos
graves problemas decorrentes do uso abusivo do crack. Mas não é com
estereótipos que se poderá enfrentá-los adequadamente. Pelo contrário,
as imagens estereotipadas servem ora a uma estratégia avestruz para
sequer enxergá-los, ora à aceitação de “soluções” truculentas, por trás
das quais se escondem muitas vezes interesses pecuniários escusos, como
os de certas “comunidades terapêuticas” a quem favorece enormemente a
política de internação compulsória financiada pelos cofres públicos.
O abandono a que as favelas foram
historicamente relegadas é o mesmo que hoje se observa em relação às
chamadas “cracolândias”. É a tendência a lidar com esses espaços por
meio de rótulos preconcebidos que geram medo, desconfiança e
desrespeito.
Se a visão da favela como antro de bandidos justificou por
décadas ações violentas e ilegais da polícia, no lugar de políticas
públicas para integrar esses espaços ao tecido urbano, a imagem da
cracolândia como antro de “zumbis” vem dando força a medidas também
violentas e discriminatórias, em vez da assistência devida ao
atendimento das reais necessidades dos usuários.
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