Aldemario Araujo Castro
Mestre em Direito
Procurador da Fazenda Nacional
Professor da Universidade Católica de
Brasília
Conselheiro Federal da Ordem dos Advogados do Brasil
(pela OAB/DF)
Site:
http://www.aldemario.adv.br
E-mail:
aldemario@aldemario.adv.br
Brasília, 24 de
novembro de 2014
I. INTRODUÇÃO
A imprensa local (Correio Braziliense de 18
de novembro) noticia que a Câmara Legislativa do Distrito Federal está na
iminência de aprovar duas matérias:
a) no sentido de “... que os deputados só podem sofrer processo
de cassação por ato de improbidade administrativa depois da sentença transitada
em julgado (quando não houver mais possibilidade de recursos
judiciais)”;
b) “… retirando cidadãos comuns e entidades representativas da
sociedade civil da relação daqueles que podem oferecer representações, denúncias
ou notícias de infrações contra deputados distritais”.
Não custa destacar que a maioria do
legislativo local protagoniza, com indesejável frequência, tristes cenas de
forte desprezo pelos mais elementares valores democráticos, notadamente um
nefasto desrespeito pela cidadania.
Nesses dois temas, aqui destacados, as
deliberações majoritárias da Câmara Legislativa do Distrito Federal voltarão a
afrontar postulados fundamentais do Estado Democrático de Direito. Impõe-se,
portanto, no momento adequado, a atuação do Ministério Público e da OAB/DF, para
reconduzir, minimamente, os trabalhos no Legislativo candango ao plano da
normalidade jurídico-constitucional.
II.1. Desnecessidade de pronunciamento
judicial definitivo para a perda de mandato parlamentar por ofensa ao
decoro
Não há necessidade de manifestação judicial
definitiva para viabilizar a perda de mandato parlamentar por ofensa ao decoro.
São vários os fundamentos que sustentam a assertiva anterior.
Primeiro, trata-se de proposição (a
necessidade de decisão judicial definitiva) profundamente divorciada da
necessária aplicação e observância do princípio constitucional da moralidade
(art. 37, caput).
Com efeito, a força normativa do aludido princípio constitucional interdita opções administrativas e legislativas claramente afastadas de um mínimo de conteúdo ético-jurídico. Na atualidade, a cidadania brasileira e brasiliense inequivocamente aponta, em termos morais, em sentido contrário à inviabilização ou postergação das responsabilidades dos agentes públicos, notadamente os eleitos, por eventuais ilícitos cometidos.
Com efeito, a força normativa do aludido princípio constitucional interdita opções administrativas e legislativas claramente afastadas de um mínimo de conteúdo ético-jurídico. Na atualidade, a cidadania brasileira e brasiliense inequivocamente aponta, em termos morais, em sentido contrário à inviabilização ou postergação das responsabilidades dos agentes públicos, notadamente os eleitos, por eventuais ilícitos cometidos.
Como desdobramento dessa primeira linha de
argumentação deve ser lembrada a “Lei da Ficha Limpa”. Esse importantíssimo
instrumento da cidadania, para realizar a probidade no ambiente administrativo e
eleitoral, e as decisões adotadas pelo Poder Judiciário com fundamento em suas
disposições apontam para a desnecessidade de trânsito em julgado de
manifestações judiciais para a realização de seus efeitos restritivos.
O Supremo Tribunal Federal, ao julgar a ADC n. 29, deixou assentada a plena validade jurídica da dispensa de decisão definitiva preconizada pela “Lei da Ficha Limpa”. Eis um trecho da ementa do julgado referido:
O Supremo Tribunal Federal, ao julgar a ADC n. 29, deixou assentada a plena validade jurídica da dispensa de decisão definitiva preconizada pela “Lei da Ficha Limpa”. Eis um trecho da ementa do julgado referido:
“2. A
razoabilidade da expectativa de um indivíduo de concorrer a cargo público
eletivo, à luz da exigência constitucional de moralidade para o exercício do
mandato (art. 14, § 9º), resta afastada em face da condenação prolatada em
segunda instância ou por um colegiado no exercício da competência de foro por
prerrogativa de função, da rejeição de contas públicas, da perda de cargo
público ou do impedimento do exercício de profissão por violação de dever
ético-profissional”.
Em segundo lugar, aplica-se, no caso em
tela, manifestação específica do princípio da separação dos Poderes (art.
2o da
Constituição). A ação punitiva do Parlamento, de natureza
político-administrativa, não depende de deliberação definitiva do Judiciário
sobre os mesmos fatos.
No mesmo sentido, o Executivo pode punir seus servidores sem necessidade de aguardar qualquer espécie de pronunciamento judicial. É preciso, pois, atentar para a existência de esferas distintas e autônomas de responsabilização no âmbito de cada Poder. A ordem jurídica consagra essa premissa em vários diplomas legais. Eis uma disposição exemplar presente na Lei n. 8.112, de 1990 (Regime Jurídico dos Servidores Federais):
No mesmo sentido, o Executivo pode punir seus servidores sem necessidade de aguardar qualquer espécie de pronunciamento judicial. É preciso, pois, atentar para a existência de esferas distintas e autônomas de responsabilização no âmbito de cada Poder. A ordem jurídica consagra essa premissa em vários diplomas legais. Eis uma disposição exemplar presente na Lei n. 8.112, de 1990 (Regime Jurídico dos Servidores Federais):
“Art. 125. As sanções civis, penais e administrativas poderão
cumular-se, sendo independentes entre si”.
Terceiro, o princípio republicano, um dos
pilares do nosso Estado Democrático de Direito, define a necessidade de um
ambiente jurídico-institucional fundado, entre outros aspectos relevantes, na
plena responsabilização dos agentes públicos por ilícitos cometidos. Dificultar
ou adiar indevidamente a responsabilização de parlamentares fere de morte o
postulado republicano, nitidamente avesso aos privilégios e vantagens iníquas.
As seguintes decisões do STF apontam claramente nesse sentido, inclusive com o
concurso, conjugado, do princípio da moralidade:
“REGIME
DE PLENA RESPONSABILIDADE DOS AGENTES ESTATAIS, INCLUSIVE DOS AGENTES POLÍTICOS,
COMO EXPRESSÃO NECESSÁRIA DO PRIMADO DA IDEIA REPUBLICANA – O RESPEITO À
MORALIDADE ADMINISTRATIVA COMO PRESSUPOSTO LEGITIMADOR DOS ATOS GOVERNAMENTAIS –
PRETENSÃO QUE, SE ACOLHIDA, TRANSGREDIRIA O DOGMA REPUBLICANO DA
RESPONSABILIZAÇÃO DOS AGENTES PÚBLICOS” (AC n. 3585 AgR/RS. Relator: Min. CELSO
DE MELLO. Julgamento: 02/09/2014. Órgão Julgador: Segunda Turma).
“A
RESPONSABILIDADE DOS JUÍZES: UMA EXPRESSÃO DO POSTULADO REPUBLICANO” (MS 28891
MC-AgR/DF. Relator: Min. CELSO DE MELLO. Julgamento: 13/06/2012, Órgão Julgador:
Tribunal Pleno)
O quarto fundamento reside na ausência de
razoabilidade de eventual decisão da Câmara Legislativa do Distrito Federal
nesse rumo. Não existe nenhuma razão jurídica minimamente válida ou útil para a
escolha a ser realizada. Em outras palavras, não existe nenhum fim juridicamente
válido ou aceitável para a adoção da medida em comento (critério da adequação ou
conformidade ínsito ao princípio da razoabilidade). A manifestação do colegiado
parlamentar perseguirá tão-somente a concretização da impunidade do parlamentar
faltoso ou mesmo a postergação indefinida e indevida de eventual
punição.
Em quinto lugar, são inúmeras as decisões da
Justiça Eleitoral apontando para a validade da deliberação parlamentar no
sentido da perda do mandato sem que exista trânsito em julgado na esfera
judicial. Eis alguns exemplos emblemáticos:
"[...] 1. Na linha dos precedentes desta
Corte, o parlamentar cassado pelo Poder Legislativo correspondente é inelegível,
nos termos do art. 1º, I, b, da LC nº 64/90. A anotação dessa inelegibilidade
pela Justiça Eleitoral é automática, em face da comunicação da Câmara Municipal
e não depende de trânsito em julgado em processo judicial específico que discuta
tal pronunciamento. […]" (Ac. de 6.10.2010 no AgR-RO nº 460379, rel. Min.
Marcelo Ribeiro.)
“[...].
1. A jurisprudência deste Tribunal é firme, no sentido de que o parlamentar
cassado pelo Poder Legislativo correspondente é inelegível, nos termos do art.
1º, I, b, da LC nº 64/90, ainda que tenha eventualmente ajuizado ação
desconstitutiva ou mandado de segurança, visando anular o ato do órgão
legislativo, sem obtenção de liminar ou tutela antecipada.
2. A anotação dessa inelegibilidade pela Justiça Eleitoral é automática, em face da comunicação da Câmara Municipal, não dependendo de trânsito em julgado em processo judicial específico que discuta tal pronunciamento, conforme decidido em diversos precedentes desta Corte. [...].” (Ac. de 3.2.2009 no AgR-REspe nº 28.795, rel. Min. Arnaldo Versiani.)
2. A anotação dessa inelegibilidade pela Justiça Eleitoral é automática, em face da comunicação da Câmara Municipal, não dependendo de trânsito em julgado em processo judicial específico que discuta tal pronunciamento, conforme decidido em diversos precedentes desta Corte. [...].” (Ac. de 3.2.2009 no AgR-REspe nº 28.795, rel. Min. Arnaldo Versiani.)
II.2. Impossibilidade de afastamento da
iniciativa do cidadão para denunciar irregularidades deflagradoras do processo
de perda de mandato por falta de decoro
O poder político pertence ao conjunto dos
cidadãos-eleitores. A chamada “soberania popular” está expressa no parágrafo
único do artigo primeiro da Constituição. A norma está assim
redigida:
“Todo o
poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou
diretamente, nos termos desta Constituição”.
Assim, agride a lógica mais elementar, o
raciocínio mais singelo possível, que o eleito pelo povo, o detentor de poder
pela via do pronunciamento popular, invista justamente contra a fonte de seu
poder. A situação só pode ser qualificada como surrealista quando o eleito tenta
afastar o eleitor dos processos de controle do exercício de sua parcela de poder
estatal.
Admitir a interdição da iniciativa popular
de controle da regularidade da conduta do eleito significa, ademais, ferir de
morte a relação entre representante e representado. Indaga-se: o eleitor serve
para votar, para alçar o candidato ao posto de parlamentar, mas não serve para
controlar ou fiscalizar o comportamento institucional desse último?
A resposta afirmativa, engendrada pela Câmara Legislativa do Distrito Federal, caracteriza-se como um verdadeiro deboche para com aquele que custeia cada centavo viabilizador do funcionamento da Casa de Leis do Distrito Federal.
A resposta afirmativa, engendrada pela Câmara Legislativa do Distrito Federal, caracteriza-se como um verdadeiro deboche para com aquele que custeia cada centavo viabilizador do funcionamento da Casa de Leis do Distrito Federal.
A pretensão do Legislativo local também não
se compatibiliza com o direito constitucional de petição. Afirma o Texto Maior
que o cidadão pode noticiar ilegalidades (ou ilicitudes) perante o Poder
Público. Confira-se o disposto no art. 5o, inciso XXXIV, alínea “a”:
“são a
todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas: o direito de petição
aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de
poder”
A ação popular prevista no art.
5o,
inciso LXXIII, da Constituição, autoriza o cidadão a atacar em juízo as afrontas
ao patrimônio público, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao
patrimônio histórico e cultural. A Lei n. 1.079, de 1950, conhecida como “Lei do
Impeachment”, reconhece que qualquer cidadão pode denunciar o Presidente da
República ou Ministro de Estado, por crime de responsabilidade, perante a Câmara
dos Deputados (art. 14). Ademais, a própria Lei Orgânica do Distrito Federal
define:
a) como objetivo prioritário: “assegurar ao
cidadão o exercício dos direitos de iniciativa que lhe couberem, relativos ao
controle da legalidade e legitimidade dos atos do Poder Público e da eficácia
dos serviços públicos” (art. 3o,
inciso II) e
b) que “qualquer cidadão, partido político,
associação ou entidade sindical poderá denunciar à Câmara Legislativa o
Governador, o Vice-Governador e os Secretários de Estado do Distrito Federal por
crime de responsabilidade” (art. 102).
Essas disposições, e várias outras no mesmo
sentido, confirmam o protagonismo reservado ao cidadão-eleitor nos processos de
controle da regularidade dos negócios públicos e da conduta ético-jurídica dos
governantes, eleitos ou não.
Caracteriza-se, pois, como juridicamente
inválida a tentativa de afastar o cidadão do processo de controle da licitude da
conduta de seus representantes. Buscar a distância do controle popular, em
irremediável rota de colisão com os valores democráticos inscritos na
Constituição, denuncia comportamento politicamente condenável e juridicamente
sujeito a todo tipo de censura, notadamente sociopolítica e judicial.
III. CONCLUSÃO
Portanto, a sociedade civil organizada do
Distrito Federal não pode aceitar passivamente as novas afrontas tramadas por
sua Câmara Legislativa aos mais elementares valores e padrões de comportamento
democrático. Impõe-se, como a OAB/DF já anunciou, adotar as providências
cabíveis, inclusive judiciais, contra tamanhas ousadias
institucionais.
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