Leitores pedem que eu comente o artigo
do ministro Luís Roberto Barroso publicado hoje e intitulado “Estado e
livre iniciativa na experiência constitucional brasileira”. Nele,
Barroso sustenta alguns pontos de vista bem liberais, após assumir que
flertou com o socialismo na juventude. Reconhecer erros juvenis e mudar é
sempre uma atitude louvável.
Barroso confessa sem rodeios: “Eu faço
parte de uma geração que acreditava no Estado como o grande protagonista
do processo social. A geração que perdeu o embate ideológico quando o
muro caiu”. Em seguida, tenta definir sua visão ideológica atualmente:
O tempo e a
idade me tornaram um liberal igualitário, algo próximo a um social
democrata. Há um ponto ótimo de equilíbrio entre o mercado e a política.
Esse ponto está no cruzamento da livre iniciativa, de um lado, e
serviços públicos de qualidade, do outro, juntamente com uma rede de
proteção social para os que não são competitivos porque não podem ser.
Na minha vivência brasileira, sou convencido de que o Estado, na sua
atuação econômica, é quase sempre um Midas pelo avesso: o que ele toca
vira lata.
Não sei bem o que é “liberal
igualitário”, uma vez que o liberalismo prega a igualdade perante as
leis, o que inexoravelmente vai levar a resultados diferentes entre
indivíduos diferentes. Mas confesso que esse tipo de discurso,
claramente social-democrata, de uma centro-esquerda mais civilizada, não
me incomoda tanto. Faz parte do jogo democrático de qualquer sociedade
avançada.
Óbvio que o desafio será traçar essa
linha divisória entre o escopo do governo e a iniciativa privada, assim
como garantir que a rede de proteção seja básica e, de preferência,
temporária, e não uma forma permanente de “todos viverem à custa de
todos”. Mas, repito, é um discurso de centro-esquerda que, para os
padrões nacionais, já seria até mesmo confundido com liberalismo.
Quando Barroso mergulha no texto
propriamente dito, divide a história de nosso estado em três partes:
patrimonialismo, oficialimo e autoritarismo. Confusão entre público e
privado, dependência estatal para tudo, e quebra da legalidade
constitucional: nossas marcas registradas. Como discordar de Barroso?
Vejamos esse trecho sobre o segundo aspecto, por exemplo:
O oficialismo é
a característica que faz depender do Estado – isto é, da sua bênção,
apoio e financiamento – todo e qualquer projeto pessoal, político ou
empresarial de grande porte. Sem o apoio da situação não se consegue
concessão, obra pública ou projetos relevantes. Quase tudo no Brasil
depende de financiamento do BNDEs, da Caixa Econômica, dos fundos de
pensão, com tudo que isso acarreta em termos de burocracia e ingerência
governamental. Se o Presidente da República não gosta do presidente de
uma empresa privada, mesmo que ela seja de capital aberto, a sorte do
indigitado está selada, porque sem boa-vontade governamental é quase
impossível empreender, em larga escala, no Brasil. Este não é um
fenômeno de uma pessoa ou de um governo. É como tem sido desde sempre.
Sim, um diagnóstico preciso dessa
dependência do estado para tudo. E tem sido assim desde sempre,
concordo, mas acrescentaria que “nunca antes na história deste país” foi
tão forte tal dependência, pois o PT abusa da prerrogativa como nenhum
outro partido antes fez. Mas vamos em frente. Barroso acrescenta uma
outra característica, o paternalismo:
Há uma
última característica, digamos assim, da formação nacional que não tem
cunho institucional, mas que também é digna de nota e carece de
superação. Refiro-me à crença de que os recursos financeiros do Estado
saem de lugar nenhum e que, portanto, o Estado pode tudo, devendo ser o
provedor paternalista de todas as necessidades. Em síntese: as relações
da cidadania brasileira com o Estado têm a marca de disfunções graves e
atávicas.
A esquerda sempre fugiu da aula sobre
escassez. Assim fica fácil pregar sempre mais estado, como se seus
recursos brotassem do solo, nascessem em árvores ou caíssem do céu. As
benesses estatais acabam não cabendo no PIB, sem falar da corrupção, da
perda de incentivos para a produtividade e do desvio de recursos
escassos de finalidades mais importantes.
Barroso critica, ainda, o
intervencionismo estatal na economia, o agigantamento do estado que só
foi parcialmente revertido com as privatizações, e ainda condenou o
refluxo ocorrido nessa área por questões ideológicas, atrasando a
concessão de rodovias, portos e aeroportos e prejudicando nossa
infraestrutura.
Por fim, Barroso alega que é preciso
superar o preconceito contra o empreendedorismo. É a iniciativa privada
que produz riqueza, mas temos um “capitalismo envergonhado” (eu diria um
“capitalismo de estado” ou “capitalismo de laços”, na verdade). Escreve
Barroso:
Ser
progressista significa querer distribuir as riquezas de forma mais
justa. Mas a história provou que, ao menos no atual estágio da condição
humana, a iniciativa privada é melhor geradora de riquezas do que o
Estado. Trata-se de uma constatação e não de uma opção ideológica.
Precisamos aceitar esta realidade e pensar a vida a partir dela.
Em suma, eis a visão de um
social-democrata mais esclarecido, que defende o capitalismo sob regras
claras e conhecidas, sem tanta interferência estatal, e uma rede de
proteção básica para os que ficarem para trás, sem cair no paternalismo.
Nada mal. Uma agenda tipicamente tucana, diga-se de passagem. E o PSDB,
como sabemos, representa a nossa esquerda mais civilizada, com a qual
dá para manter um diálogo construtivo, ao contrário do PT.
Tudo isso é muito interessante, e admito
que apreciei o texto do ministro. Mas fecho lembrando apenas de uma
coisa importante: Barroso, o pensador político, interessa-me menos do
que Barroso, o guardião da Constituição. É para isso que ele está no
STF: para proteger nossa “carta magna”, não para “acelerar o processo
histórico”, para julgar com base em sua ideologia, tampouco para aliviar
a barra de companheiros que lhe colocaram lá.
Será julgado por seu desempenho nessa
fundamental missão de preservar nossa Constituição, não pelo que
considera adequado como papel do estado, pois é ministro do STF, não
candidato a eleições. E, convenhamos, nesse quesito não começou nada bem
no julgamento do mensalão, elogiando réu e levantando suspeitas sobre
seu apego à Constituição sem malabarismos. Está com a reputação em
xeque…
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