quarta-feira, 29 de janeiro de 2014
Euzinho - Luiz Felipe Pondé
"A modernidade é uma declaração de
guerra à ideia de tradição. Mas nós, modernos, continuamos a não
perceber isso, e o resultado é que suspiramos como bobos diante do que
pensamos ser uma tradição, apesar de detestarmos qualquer sinal
verdadeiro de tradição.
Procuramos tradições em workshops xamânicos, espaços budistas nas Perdizes, livros baratos sobre como viviam os druidas.
São muitas as definições de
tradição. Não vou dar mais uma, mas sim elencar atitudes que estão muito
mais próximas do que é uma tradição do que cursos de cabala nos
Jardins. Nada tenho contra estudar culturas antigas, apenas julgo um
equívoco confundir a ideia de tradição com modas de uma espiritualidade
de consumo.
Não existe xamã na Vila Madalena. A
cabala não vai salvar meu casamento. Meditação não fará de mim uma
pessoa melhor no trabalho. Imitar a alimentação de monges tibetanos não
aliviará minha inveja. Frequentar cachoeiras indígenas não fará de mim
uma pessoa menos consumista. Tatuar palavras védicas não me impedirá de
fazer qualquer negócio pra viver mais.
Visitar templos no Vietnã não fará de mim alguém menos dependente das redes sociais. Desejar isso fará de mim apenas ridículo.
Uma tradição, pra começo de
conversa, nada tem a ver com "escolha". Não se escolhe uma tradição.
Neste sentido, muitos rabinos têm razão em desconfiar de conversos ao
judaísmo por opção. Uma tradição funciona sempre contra sua vontade, à
revelia de sua consciência, submetendo-a ao imperativo que escapa à
razão mais imediata. A única forma de tradição a que a maioria de nós
ainda tem acesso é a língua materna.
Colocar os filhos pra dormir todos
os dias é mais próximo do que é uma tradição do que estudar velhos
símbolos indígenas ou brincar com eles em pousadas nas chapadas. Não
poder sair à noite porque um dos filhos tem febre é tradição. Velá-lo
durante a noite é tradição. Morrer de medo durante esta noite é
tradição. Nada menos tradicional do que uma mulher sem filhos. Ela até
pode aprender capoeira, mas será apenas iludida, se sua intenção for
experimentar a tradição afro.
Nada tenho contra mulheres não terem filhos, digo apenas, de forma modesta, o que é uma tradição.
Homens que sustentam sua mulher e
filhos são tradicionais, mesmo em tempos como os nossos em que todo
mundo mente sobre isso. Levar seus velhos ao hospital, enterrá-los, em
agonia ou com absoluta indiferença, é tradição. Andar pela casa à noite
pra ver se tem algum ladrão, enquanto sua mulher e filhos ficam
protegidos no quarto, é tradição. Ser obrigado a ser corajoso é uma
tradição, maldita, mas é.
Pular sete ondas numa Copacabana
lotada nada tem de tradicional, é apenas chato. Tradição é ir pra guerra
se não sua mulher achará você covarde. Lavar louça, fazer o jantar,
lavar banheiros, morrer de medo diante do médico. Falar disso pra quem
vive uma situação semelhante a você. Ter que passar nas provas na
escola. Ter que ser melhor do que os colegas. Sangrar todo mês.
Tradição é pagar contas, enfrentar
finais de semana vazios e não desistir. É sonhar com um futuro que nunca
chega. Engravidar a namorada. Ter ciúmes. Odiar Deus porque somos
mortais. Ter inveja da amiga mais bonita, do amigo mais forte e
inteligente. É cuidar dos netos. É educar os mais jovens e não deixar
que eles acreditem nas bobagens que inventam.
Tradição funciona como hábitos que
se impõem com a força de um vulcão, de um terremoto, de um tsunami, de
uma febre amarela. Nada tem a ver com se pintar como aborígenes pra
defender reservas indígenas ou abraçar árvores.
Evolução espiritual é um dos top em
quem quer "adquirir" uma tradição. Mas esta nada tem a ver com "buscar"
uma evolução espiritual como forma de fugir de filhos que têm febre ou
compromissos afetivos. A evolução espiritual verdadeira é algo que nos
acomete como uma disciplina aterrorizante.
Teste definitivo: você busca
evolução espiritual pra aperfeiçoar seu "euzinho"? Lamento dizer que
qualquer evolução espiritual (se existir) começa com você esquecer que
seu euzinho existe."
Luiz Felipe Pondé - Folha de São Paulo, 27 de janeiro de 2014.
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