Cuiabá: vai ter Copa. Graças ao improviso
Capital de Mato Grosso corre contra o tempo para entregar o mínimo. Porque as obras prometidas como legado não saíram do papel, motivo de vergonha
Numa entrevista à agência Reuters que rodou o mundo desde a noite de sexta-feira, o ex-jogador Ronaldo, que tem assento no Comitê Organizador Local da Copa, soltou o verbo sobre o atraso nas obras de preparação do Brasil. “Eu me sinto envergonhado”, disse ele. Foi uma declaração contundente, vinda de uma figura pública brasileira diretamente envolvida no torneio, e o governo tentou reagir.No sábado, a presidente Dilma Rousseff e o ministro do Esporte, Aldo Rebelo, se pronunciaram. “Não temos do que nos envergonhar”, disse a presidente, ao passo que ministro – surpresa! – lançou mão de uma metáfora futebolística e acusou o ex-atacante de desferir “um chute contra o próprio gol”.
Mas a verdade, infelizmente, é que o Brasil tem, sim, motivos para se envergonhar. E esses motivos estão expostos na terra revirada e nas ruas obstruídas de Cuiabá (MT), cidade que, a vinte dias do início do mundial de futebol, sintetiza todos os erros de organização em que o país se enredou. Quando Cuiabá foi escolhida, em 2009, uma das doze sedes da Copa, os mato-grossenses ficaram esperançosos de deixar no passado a palavra atraso.
Construção da trincheira Santa Rosa em frente ao hotel onde ficará hospedada a comitiva da Fifa em Cuiabá (MT
Com infraestrutura urbana precária, a capital do
Estado prometia uma revolução. Porém, uma visita à cidade revela que a
palavra atraso, além de ser pronunciada em todas as esquinas, agora vem
acompanhada de termos como desvio e improviso. As principais obras de mobilidade urbana não ficaram – e nem ficarão – prontas a tempo.
O deslocamento na cidade é caótico: dezenas de placas de trânsito indicam caminhos interditados por causa de canteiros de obras, que acumulam entulho e barro. Com tráfego pesado, as ruas alternativas foram esburacadas. Principal responsável pelo iminente vexame que o Brasil transmitirá aos estrangeiros que chegarão ao país nas próximas semanas, o governo de Mato Grosso admite o despreparo para executar as obras prometidas e tenta garantir o mínimo.
"Se eu não trouxer o turista, o torcedor, a família Fifa e os jogadores do aeroporto ao hotel sem passar por aqueles desvios e lugares terríveis eu matei a minha cidade e a minha copa", disse ao site de VEJA o responsável pela Secretaria Extraordinária da Copa do Mundo, Maurício Guimarães.
O Estádio Nacional de Brasília: o custo se aproxima dos 2 bilhões de reais em verba pública
A capital mato-grossense tornou-se exemplo de como não fazer: subestimou dificuldades previsíveis, como as desapropriações de imóveis, falta de mão de obra qualificada, má gestão e atrasos no repasse dos recursos federais e na conclusão dos projetos.
“As condições financeiras apareceram e fomos audaciosos de abraçar tudo para não desperdiçar o que estava à disposição do poder público, como sede de Copa. Isso criou um grande volume de execução num tempo muito curto. Foi obra demais, excesso de trabalho. O Estado não estava preparado”, admite Maurício Guimarães. Parte da responsabilidade pela desorganização pode ser atribuída à escolha das sedes: a Fifa sugeriu de oito a dez, mas o Brasil queria ampliar para dezessete; terminou com doze. A pulverização fez o país erguer estádios milionários que dificilmente terão utilidade no futuro – Mato Grosso, por exemplo, não tem nenhum time na elite do futebol, tampouco um campeonato estadual atraente.
29 anos.
#nãovaiternacopa
Táxi | Cuiabá tem 604 táxis e Várzea Grande 187: mais de 1 000 habitantes por taxista |
Hotéis | O déficit atual é de 12 000 leitos em Cuiabá. Não há mais quartos nos jogos: Chile x Austrália e Colômbia x Japão |
Turismo | Três pontos de visitação da Chapada dos Guimarães estão fechados: Salgaderia, Portão do Inferno e Mirante do Centro Geodésico da América do Sul |
Campo de Treinamento | Os dois COTs devem ser entregues incompletos, apenas com campos prontos |
Aeroporto Marechal Rondon | Novo terminal funcionará parcialmente e com puxadinho (módulo operacional) na Copa. Novo setor internacional, com praça de alimentação e lojas, não deve abrir |
Os primeiros visitantes desembarcarão num empoeirado cenário de “praça de guerra”, conforme definiu na semana passada o presidente do Tribunal de Contas da União (TCU), ministro Augusto Nardes. Apesar de não haver nenhuma batalha em Cuiabá, os atrasos mais visíveis ficam em “trincheiras” – mergulhões para carros em cruzamentos da Avenida Miguel Sutil, que corta a cidade com pistas mal pavimentadas e conversões improvisadas. As duas maiores "trincheiras", Jurumirim e Santa Rosa, ficarão pela metade, somente com pistas laterais e rotatórias abertas à passagem de carros depois de asfaltadas às pressas. Na da Santa Rosa, ainda vaza água em solo com terra e pedras aparentes em frente ao hotel onde a comitiva da Fifa se hospedará.
O Tribunal de Contas do Estado (TCE) e o Conselho Regional de Engenharia e Agronomia (CREA) questionaram em vistorias o acabamento das obras. Relatórios dos dois órgãos apontaram uma série de falhas visíveis nas construções: ausência de sinalização, infiltrações, drenagem inadequada, rachaduras e paredes tortas (fora de prumo). A pista de saída do recém-inaugurado Viaduto do Despraiado, por exemplo, corre o risco de ser invadida por terra se chover forte por causa do deslizamento de um barranco ao lado.
“Em novembro do ano passado já apontávamos que as obras não estariam prontas se continuassem no ritmo em que se encontravam”, disse o conselheiro do CREA-MT André Schuring. "Por causa da qualidade terrível, começava a ficar claro que o tal legado da Copa também é uma obra de ficção." Ele observa a necessidade de inspeções técnicas para identificar quanto pode custar ao município o eventual reparo dos erros.
Reclamar das obras não é exclusividade da turma "do contra". Até ex-gestores do governo Silval Barbosa (PMDB) se constrangeram com a preparação. "Eu fico com vergonha em receber as pessoas com a bagunça que fizeram em Cuiabá. Está tudo arrebentado", disse à reportagem, sob anonimato, um ex-secretário do Estado.
Clique aqui e veja galeria: Atrasos das obras da Copa em Cuiabá
Não faltou dinheiro. Só as obras da Copa em Cuiabá custaram aos cofres públicos pelo menos 2,3 bilhões de reais, de acordo com levantamento da ONG Contas Abertas. Porém, o governo só executou pouco mais de metade do orçamento: 1,2 bilhão de reais. Maior e mais caro projeto, o Veículo Leve sobre Trilhos (VLT) consumiu mais de 1,5 bilhão de reais e só deve entrar em operação em 2015.
Os operários abandonaram boa parte dos canteiros ao longo dos 22 quilômetros do modal, na estratégia do governo estadual de priorizar as construções com chance de conclusão, ainda que parcial. De todas as obras previstas na matriz de responsabilidades, Cuiabá deve entregar apenas o estádio e o corredor viário Mário Andreazza – duplicação da rodovia e da ponte de acesso entre aeroporto e o centro da capital. O Arena Pantanal, um estádio moderno de 570 milhões de reais, já está sob administração da Fifa – mas ainda falta concluir o cabeamento e instalar estruturas de apoio temporárias, cabines de transmissão, tendas e grades.
Chegada – O secretário Maurício Guimarães diz que "todas as obras lhe preocupam", mas vai priorizar a liberação da saída do aeroporto de Cuiabá, trecho que ele considera "o principal gargalo". Passageiros elegeram o Marechal Rondon o pior aeroporto entre os quinze que servirão aos turistas na Copa – são doze sedes, mas São Paulo tem três aeroportos, e o Rio, dois. Cuiabá ficou na última posição em quatro das cinco pesquisas de satisfação da Secretaria da Aviação Civil da Presidência. A estrutura é acanhada: banheiros apertados e faltam calçadas livres na entrada do terminal de embarque, ainda em obras de ampliação.
Sair do aeroporto será tarefa desgastante. As interdições de trânsito têm causado engarrafamentos intensos na cidade: a frota da capital e da cidade vizinha Várzea Grande, onde fica o Marechal Rondon, soma 224 000 carros e 104 000 motos, para uma população conjunta de 833 000 habitantes. E há um agravante: o déficit de táxis. Sem contar os turistas, a média é de mais de 1 000 habitantes por taxista nos dois municípios. Em São Paulo, a proporção é mais branda: cada táxi serve a 360 moradores. "Acho que os turistas vão ficar muito arrependidos e se perguntar o que vieram fazer aqui", disse o taxista em Várzea Grande Pedro Paulo Ventura, de 29 anos.
Fonte: Veja On Line
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