domingo, 25 de maio de 2014

Decisão do STF: Reserva de cargos e empregos públicos para pessoas com deficiência

ULTIMA INSTÂNCIA
Tema entrou em discussão no STF na mesma semana em que Senado começou a debater cotas para negros em concursos
 
 
Christianne Boulos - 18/05/2014 - 10h17
 
 
Na mesma semana em que entrou, em regime de urgência, para a pauta de deliberações plenárias do Senado Federal, o projeto de lei, já aprovado na Câmara dos Deputados, que “reserva 20% das vagas em concursos públicos da Administração direta e indireta da União a candidatos negros que assim se declararem na inscrição”, outra espécie de ação afirmativa envolvendo cargos e empregos públicos foi objeto de apreciação, desta feita por Ministro do STF (Supremo Tribunal Federal). 


Trata-se de decisão monocrática tomada em sede de recurso interposto contra acórdão do TST (Tribunal Superior do Trabalho) que havia considerado improcedente pleito de candidata aprovada em concurso público daquele mesmo Tribunal para fazer jus a uma das vagas reservadas a pessoas com deficiência (RMS 32.732, Rel. Min. Celso de Mello).


A Constituição brasileira de 1.988 consagrou uma série de princípios, garantias e mecanismos voltados à proteção das pessoas com deficiência: normas referentes ao acesso ao mercado de trabalho (art. 7º, XXXII), bem como a cargos e empregos públicos (art. 37, VIII); atribuição de competência material comum (art. 23, II) e legislativa concorrente (art. 24, XVI), aos entes da federação, para atuação no sentido dessa proteção; regras especiais para obtenção de benefícios no âmbito da assistência social (art. 203, IV e V), do regime geral de previdência social (art. 201, parágrafo 1º) e mesmo da previdência de servidores públicos (art. 40, parágrafo 4º); acesso à educação (art. 208, III); direitos das crianças, adolescentes e jovens com deficiência (art. 227, parágrafo 1º, II); acessibilidade de logradouros, edifícios públicos e veículos de transporte coletivo (arts. 227, parágrafo 2º, e 244).


Desde então, normas e políticas, em nível infraconstitucional, têm sido editadas, de forma a dar concretude às determinações constitucionais, a começar, no âmbito federal, pela Lei nº 7.853/1.989, que, regulamentada pelo Decreto nº 3.298/1.999, dispõe sobre a política nacional para a integração da pessoa com deficiência. 


O ápice da proteção normativa foi alcançado com a integração ao ordenamento jurídico interno, em posição equivalente à das emendas constitucionais (CRFB, art. 5º, parágrafo 3º), da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência – dita Convenção de Nova Iorque - aprovada, pelo Congresso Nacional, por meio do Decreto legislativo nº 186/2.008, e promulgada, pelo Presidente da República, por meio do Decreto nº 6.949/2.009.


No que se refere especificamente ao acesso a cargos e empregos públicos, a Constituição, em seu art. 37, VIII, prevê de maneira expressa que “a lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão”. 


Esse percentual, no caso de União, autarquias e fundações federais, por exemplo, é estabelecido pela Lei nº 8.112/1.990, cujo art. 5º, parágrafo 2º, assegura às pessoas com deficiência “o direito de se inscrever em concurso público para provimento de cargo cujas atribuições sejam compatíveis com a deficiência de que são portadoras”, sendo-lhes reservadas “até 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas no concurso”.
É nesse contexto normativo que se insere a demanda objeto do RMS 32.732. Uma candidata havia obtido aprovação em concurso público para provimento de cargo do quadro de pessoal do TST, classificando-se na décima posição entre os candidatos com deficiência, qualidade na qual havia feito sua inscrição para o certame, em virtude de deficiência física consistente em encurtamento em 2,73 cm de sua perna direita. 


No entanto, em função de perícia médica realizada, na sequência, em que se afirmara que a deficiência da candidata não se enquadraria no quanto previsto na legislação federal quanto à definição da deficiência para fins de acesso a vagas reservadas (art. 4º, I, do Decreto 3.298/1.999), foi a candidata eliminada da lista de candidatos com deficiência, passando a figurar apenas na lista de classificação geral. Contra esse ato, a candidata impetrou mandado de segurança, perante o próprio TST, que, contudo, denegou a segurança pleiteada, por entender que, a teor do art. 4º, I, do Decreto 3.298/1.999, “para que a deformidade congênita ou adquirida de membros caracterize a deficiência física para efeito de reserva de vagas, é necessária a comprovação de que essa deformidade produza dificuldades para o desempenho das funções do cargo” – o que, à vista do Tribunal, não seria o caso da candidata em questão, já que não teria sido comprovado “que a deformidade congênita apresentada pela Impetrante produza dificuldades para o desempenho das atribuições do cargo para o qual fora aprovada”. 

Em face do acórdão que denegou a segurança, a candidata interpôs recurso ordinário perante o STF (CRFB, art. 102, II, a), para o fim de reverter a decisão que a eliminara da lista de candidatos com deficiência, de modo a fazer prevalecer a classificação obtida quando de sua aprovação no concurso, nessa condição.


O pleito da candidata encontrou guarida já no parecer do PGR (Procurador-Geral da República), cujos fundamentos foram, ainda, acolhidos como razão de decidir pelo Relator, Min. Celso de Mello, que se valeu, ademais, da compilação de entendimentos doutrinários e precedentes do próprio STF para resolver, monocraticamente, o RMS 32.732. Alguns aspectos relevantes do tratamento normativo dispensado à questão do acesso de pessoas com deficiência a cargos e empregos públicos – sobretudo de sua interpretação e aplicação - foram abordados nesse caso.


Extraem-se, em primeiro lugar, da decisão do Min. Celso de Mello, a razão e os fins inerentes à reserva de vagas assegurada pelo art. 37, VIII, da Constituição. A esse respeito, situando o tema no âmbito das técnicas de aplicação do princípio da igualdade sob o aspecto material, assinalou o Ministro que “o tratamento diferenciado em favor de pessoas portadoras de deficiência, tratando-se, especificamente, de acesso ao serviço público, tem suporte legitimador no próprio texto constitucional (CF, art. 37, VIII), cuja razão de ser, nesse tema, objetiva compensar, mediante ações de conteúdo afirmativo, os desníveis e as dificuldades que afetam os indivíduos que compõem esse grupo vulnerável”. 


Como destacou mais adiante, com referência, inclusive, ao preâmbulo da Convenção de Nova Iorque, essas ações “buscam, na realidade, ‘promover e proteger os direitos e a dignidade das pessoas com deficiência’, corrigindo ‘as profundas desvantagens sociais’ que afetam tais pessoas, em ordem a tornar efetiva ‘sua participação na vida econômica, social e cultural, em igualdade de oportunidades, tanto nos países em desenvolvimento como nos desenvolvidos’ (Preâmbulo, ‘y’)”.


Significativa, nesse passo, a remissão, efetuada tanto pelo PGR quanto pelo Min. Celso de Mello, a acórdão de uma das Turmas do STF, em que se destacou a “tripla função” da reserva de vagas em comento: “a) garantir ‘a reparação ou compensação dos fatores de desigualdade factual com medidas de superioridade jurídica, [verdadeira] política de ação afirmativa que se inscreve nos quadros da sociedade fraterna que se lê desde o preâmbulo da Constituição de 1988’ (...); b) viabilizar o exercício do direito titularizado por todos os cidadãos de acesso aos cargos públicos, permitindo, a um só tempo, que pessoas com necessidades especiais participem do mundo do trabalho e, de forma digna, possam manter-se e ser mantenedoras daqueles que delas dependem; e, c) possibilitar à Administração Pública preencher os cargos com pessoas qualificadas e capacitadas para o exercício das atribuições inerentes aos cargos, observando-se, por óbvio, a sua natureza e as suas finalidades” (RE 676.335, Rel. Min. Cármen Lúcia).


Ainda a esse propósito, o Ministro salientou que a previsão da reserva de vagas em nível constitucional traduz-se em “cláusula de proteção viabilizadora de ações afirmativas” em favor das pessoas com deficiência, “o que veio a ser concretizado com a edição de atos legislativos como as Leis nº 7.853/89 e nº 8.112/90 (art. 5º, § 2º)”. A referência às normas infraconstitucionais que buscaram dar concreção aos ditames constitucionais na matéria levanta um segundo aspecto interessante abordado no RMS 32.732, o qual foi objeto da divergência central entre, de um lado, o entendimento da perícia médica a que se submeteu a candidata e do acórdão do TST e, de outro lado, o entendimento consignado no parecer do PGR e na decisão do Min. Celso de Mello.


O dispositivo ao qual se apegaram a perícia e o TST é retirado do regulamento da política nacional para a integração da pessoa com deficiência; mais especificamente, diz respeito ao que se considera deficiência física para fins de aplicação dessa política. Trata-se do art. 4º, I, do Decreto 3.298/1.999, segundo o qual a deficiência física corresponde à “alteração completa ou parcial de um ou mais segmentos do corpo humano, acarretando o comprometimento da função física, apresentando-se sob a forma de paraplegia, paraparesia, monoplegia, monoparesia, tetraplegia, tetraparesia, triplegia, triparesia, hemiplegia, hemiparesia, ostomia, amputação ou ausência de membro, paralisia cerebral, nanismo, membros com deformidade congênita ou adquirida, exceto as deformidades estéticas e as que não produzam dificuldades para o desempenho de funções”. 


Esta parte final do dispositivo foi o que levou à decisão pela exclusão da candidata da lista de pessoas com deficiência, interpretada por perícia e TST como sendo o que permitiria exigir comprovação de que a deficiência deveria produzir dificuldades para o desempenho das atribuições do cargo, especificamente, o que não teria ocorrido no caso em tela.


Em seu parecer, acolhido integral e expressamente pelo Relator do caso como fundamento de decidir, o PGR foi categórico, ao afirmar que o entendimento do TST não deveria prevalecer, uma vez que “a expressão ‘desempenho de funções’ (ao final do art. 4º, I, do Decreto 3.289/1.999) diz respeito às funções orgânicas do indivíduo, e não às funções do cargo”. 


E que, em relação a cargos públicos, na esfera federal, a Lei nº 8.112/1.990, em seu art. 5º, parágrafo 2º, assegura às pessoas com deficiência que se inscrevam em concursos para provimento de cargos “cujas atribuições sejam compatíveis com a deficiência” que possuam, de forma que, nos dizeres do PGR, a lei “estabelece a compatibilidade entre a deficiência e as funções do cargo como requisito para a investidura no cargo público, e não como requisito para a caracterização da deficiência”. 


E mais: asseverou o PGR que “a interpretação adotada pelo Tribunal recorrido, além de mal se acomodar, data venia, à garantia constitucional de reserva de vagas para deficientes, entra em linha de choque com os parâmetros interpretativos estabelecidos na Lei n. 7.853/1989”, que define a política nacional de integração das pessoas com deficiência e estabelece como vetores interpretativos de suas normas “os valores básicos da igualdade de tratamento e oportunidade, da justiça social, do respeito à dignidade da pessoa humana, do bem-estar, e outros, indicados na Constituição ou justificados pelos princípios gerais de direito” (art. 1º, parágrafo 1º).


Esse tema da interpretação das normas relativas aos direitos das pessoas com deficiência foi outro dos aspectos relevantes, senão o mais, dentre os abordados no RMS 32.732. 


O Min. Celso de Mello ressaltou, a esse respeito, a importância da Convenção de Nova Iorque, que, ao versar sobre direitos humanos e tendo sido aprovada pelo Congresso Nacional em conformidade com o procedimento estabelecido no art. 5º, parágrafo 3º, da Constituição, consagra normas dotadas de “autoridade, hierarquia e eficácia constitucionais”. 


Assinalou que magistrados e tribunais, ao exercerem atividade interpretativa, em especial no âmbito dos tratados internacionais de direitos humanos, devem observar princípio hermenêutico básico, no sentido de se dar “primazia à norma que se revele mais favorável à pessoa humana, em ordem a dispensar-lhe a mais ampla proteção jurídica”. 

Como resultante desse princípio, visando a “conferir maior eficácia e preponderância à norma mais favorável à pessoa portadora de deficiência”, concluiu que devem ser observados “os vetores definidos no Artigo 3” da Convenção de Nova Iorque, destacando-se, no contexto do caso que ensejou o RMS 32.732, “os princípios referentes (1) à dignidade das pessoas, (2) à sua autonomia individual, (3) à sua plena e efetiva participação e inclusão na sociedade, (4) ao respeito pela alteridade e pela diferença e aceitação das pessoas portadoras de deficiência, sem qualquer discriminação, como valores inerentes à diversidade humana, e (5) à igualdade de oportunidades”.


Seriam esses vetores, consignou o Relator, que dariam “plena legitimidade à pretensão jurídica que a parte ora recorrente deduziu nesta sede processual”. Em outras palavras, a razão está com a candidata, que, assim, teve provido o recurso que interpôs perante o STF e, portanto, concedida a segurança que inicialmente lhe havia negado o TST.


Concreta e praticamente, a candidata conseguiu o que queria: manter-se na lista de candidatos com deficiência, obtendo o reconhecimento de que, mediante aprovação e observada a ordem de classificação, faz jus a uma das vagas reservadas a pessoas com deficiência. Para além do caso concreto, embora se trate de decisão monocrática e que afete objetivamente uma única pessoa, a decisão se traduz em mais um passo no sentido de se consolidar uma tendência, que bem se reflete no que asseverou o Min. Celso de Mello nesse mesmo caso: a compreensão de que “o tratamento diferenciado a ser conferido à pessoa portadora de deficiência, longe de vulnerar o princípio da isonomia, tem por precípua finalidade recompor o próprio sentido de igualdade que anima as instituições republicanas”.

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