Josias de Souza
Ao celebrar a conquista da realização da Copa no Brasil, Lula sonhara com um 2014 triunfante. O mundo se voltaria para os pés de Neymar. E, com o rabo do olho, enxergaria a pujança social e econômica do país redescoberto por ele que ele em 2003. De quebra, o eleitor brasileiro caminharia em direção às urnas feliz dentro dos sapatos. Por enquanto, a menos de um mês do ponta pé inaugural, deu tudo errado.
Há dez dias, num artigo veiculado no diário espanhol El País, Lula anotou que a Copa no Brasil virou “objeto de feroz luta política eleitoral”. Segundo ele, “à medida que se aproxima a eleição presidencial de outubro, os ataques ao evento tornam-se cada vez mais sectários e irracionais.” As afirmações são, a um só tempo, mentirosas e falaciosas.
São mentirosas porque levam o leitor a supor que Aécio Neves e Eduardo Campos derramam baldes de saliva tóxica contra o que Dilma Rousseff chama de “Copa das Copas”. São falaciosas porque visam encobrir duas obviedades bem racionais: o descompromisso do governo com os prazos que assumira e a incompatibilidade do custo das obras com as prioridades do pedaço pobre da sociedade brasileira.
Quanto ao vexame dos prazos, negociados em 2007 e descumpridos agora, o ex-craque Ronaldo, amigo de Lula e garato-propaganda do Comitê Organizador da Copa, produziu a melhor síntese: “…É essa burocracia toda, uma confusão, um disse-me-disse, são os atrasos. É uma pena. Eu me sinto envergonhado, porque é o meu país, o país que eu amo, e a gente não podia estar passando essa imagem para fora.”
Quanto à perversidade da desconexão entre gastos e prioridades, a coisa ficou ainda mais explícita depois das declarações feitas nesta sexta-feira (23) pelo ministro petista Gilberto Carvalho (Secretaria Geral da Presidência), outro amigo de Lula: “Não se exclui a possibilidade de movimentos de oportunidade, que aproveitem a visibilidade que o país tem nesse momento e a importância dos serviços [públicos], para tentar auferir benefícios desse clima.”
Gilbertinho, como Lula o chama, pronunciou algo muito parecido com um apelo: “O que nós estamos esperando é o seguinte: que as pessoas tenham o bom senso de saber que a sua reivindicação pode ir até o momento em que ela começa a criar problemas para a imensa maioria da população. [...] Que façam suas manifestações, mas não as levem a um ponto que, de maneira irresponsável, causem um prejuízo ao país num momento tão sagrado e tão importante, em que os olhos todos do mundo estão voltados para o Brasil.”
O artigo de Lula coincidiu com o surgimento de um novo ciclo de protestos. Nada a ver com a jornada de junho. A rapaziada apolítica que descera espontaneamente ao meio-fio no ano passado voltou para casa, empurrada pelos black blocs. E não deu mais as caras. Nos últimos dias, foram ao asfalto: sem-teto, sem-terra, professores, metalúrgicos, servidores de hospitais e de universidades, garis, motoristas e cobradores…
São “movimentos de oportunidade” urdidos pelos chamados grupos organizados da sociedade civil —corporações que, em sua maioria, têm vínculos históricos com o PT. Por mal dos pecados, uma das atribuições de Gilbertinho no Planalto é justamente manter desobstruídos os canais de diálogo com essa gente, impedindo que justas reivindicações se convertam em atos “irresponsáveis”. Para complicar, o oportunismo chegou às polícias, que usam a Copa para chantagear o Estado.
Como se fosse pouco, Lula decidiu comparar o Brasil atual com o de 1950. “O país de hoje é mais próspero e equitativo do que era há seis décadas”, anotou no artigo escrito para espanhol ler. “Entre outras razões porque a nossa gente –principalmente a que vive no ‘andar de baixo da sociedade’– libertou-se dos preconceitos elitistas e colonialistas e passou a acreditar em si mesma e nas possibilidades do país.”
Os brasileiros mais antigos talvez enxerguem na alusão de Lula a 1950 um quê de mau agouro. Como se recorda, foi naquele ano que o Brasil conheceu o maior desastre futebolístico de sua história: a derrota, por 2 a 1, da seleção brasileira para o time do Uruguai, em pleno Maracanã, o mesmo palco da final de 2014. Foi naquele ano também que o país elegeu Getúlio Vargas, o presidente que se suicidaria.
Alheio aos maus sinais, Lula realçou em seu texto que o país de hoje, mais pujante e igualitário, em nada faz lembrar o de 1950. “É esse novo Brasil que vai sediar a Copa. Um país que já é a sétima economia do planeta e que, em pouco mais de dez anos, tirou 36 milhões de pessoas da miséria e levou 42 milhões para a classe média.”
Meio sem nexo, ele reclamou: “Determinados setores parecem desejar o fracasso da Copa, como se disso dependessem as suas chances eleitorais. E não hesitam em disseminar informações falsas que às vezes são reproduzidas pela própria imprensa internacional sem o cuidado de checar a sua veracidade”. Mas deu de ombros: “O país, no entanto, está preparado, dentro e fora de campo, para realizar uma boa Copa do Mundo – e vai fazê-lo.”
Ao injetar política num evento que deveria ser apenas esportivo, Lula ressuscita outro período tenebroso da história nacional. Uma fase em que o torcedor torcia com uma ponta de sentimento de culpa, sabendo que o triunfo da seleção faria a festa do general de plantão no Planalto. O paradoxo foi levado às fronteiras do paroxismo em 1970, ano em que o sucesso da seleção de Pelé nos gramados do México ajudou a ditadura a abafar os gritos que soavam nos porões do Brasil.
Sem querer, Lula atribui algum sentido à propaganda do medo que o PT exibiu em rede nacional de tevê. Os verdadeiros “fantasmas do passado” são feitos de oportunismo e empulhação. Os amantes do futebol não merecem semelhante agressão. Se não consegue evitar que Ronaldo fique “envergonhado”, se não tem forças para segurar os “movimentos de oportunidade” que inquietam Gilbertinho, Lula pelo menos deveria deixar o torcedor torcer em paz.
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