domingo, 25 de maio de 2014

Justiça e Memória: a semana de Zavascki e Gabrielli

BLOG do NOBLAT


Vitor Hugo Soares
“- Doutor, tenho ao meu lado o Direito.
- É pouco - respondeu o juiz”.

(Raimundo Reis, antigo deputado do PSD e cronista do cotidiano na Bahia, no livro de memórias “Enquanto é Tempo”)

Diante de dois fatos cruciais nesta encrespada semana de maio (os recuos e vacilações do ministro Teori Zavascki, do STF, no julgamento do habeas corpus dos presos da Operação Lava Jato, e do ex-presidente da Petrobras José Sérgio Gabrielli, no depoimento à CPI do Senado para “apurar” malfeitos na compra da refinaria Pasadena pela estatal brasileira) , recorri à releitura de "Enquanto é Tempo", de Raimundo Reis, citado acima.

"Enquanto é Tempo", escrito e publicado por conselho e insistência de um vaqueiro da fazenda do autor, que ainda deu a indicação do título genial para um livro de recordações pessoais, trata da vida, contada aleatoriamente ao correr do tempo e eventos.

Bem ao modo e estilo livre, original e sempre surpreendente de Raimundo, mas sem se levar demasiadamente a sério nem tomar a sério demais a muita gente "metida a besta" que o rodeava na política e no poder nos bons e maus tempos que ele atravessou.Principalmente nos bons.

O relato cobre décadas da história baiana e brasileira, principalmente o tempo em que - à moda da canção famosa de Gilberto Gil - "quem governava era Antonio Balbino" , então mestre do pessedismo estadual e nacional: vai do parto complicado na chegada ao mundo do neto do poderoso Petronilo Reis (o coronel Petro), respeitado até por Virgulino Ferreira, o Lampião, em suas incursões de temido cangaceiro pelo sertão do Rio São Francisco, em Santo Antonio da Gloria, até os anos 60/70.

Nos anos da ditadura, o autor já se transformara em inquieto parlamentar da Assembléia Legislativa da Bahia e brilhava, também, na condição de um dos mais cultuados intelectualmente e lidos cronistas do jornalismo impresso e radiofônico na sua terra. Citado até por Castelinho, na célebre coluna política do Jornal do Brasil.
O livro fala de coisas do amor, da imprensa, da família, da política, do direito e aplicação da justiça, da ética, retórica e atuação prática dos homens públicos na Bahia e no país. Registre-se que "Enquanto é Tempo" é um livro publicado em 1976, pela extinta Editora União, de Salvador.

Raridade que ganhei de presente de Claudio Leal, ex-repórter da revista digital Terra Magazine, atualmente cumprindo pautas de "frilas", entre São Paulo e Paris. Textos refinados do tipo do perfil do poeta Thiago de Mello, que ele produziu na Amazônia e publicou recentemente na Folha. Primoroso trabalho de jornalismo cultural, cada vez mais raro no Brasil das celebridades de estação e ídolos de barro.

Os ainda mal explicados fatos desta semana – protagonizados pelos sisudo e aparentemente inflexível ministro Teori, no Supremo, e o economista Gabrielli, atual secretário de Planejamento do governo Jaques Wagner (PT), ex-presidente da Petrobras no Governo Lula, na CPI da estatal no Senado, são emblemáticos deste tempo temerário. Igualmente exemplar (no pior sentido da palavra) é a própria CPI de fachada, tocada a muque pelo presidente do Congresso, Renan Calheiros, e a maioria governista, sem contraditório, sem cobertura crítica da imprensa, sem reações firmes da oposição ou da sociedade, em complacente compasso de espera do começo da disputa da Copa do Mundo. Espaço amplo de esquecimento, apostam os sabidos da vez e os de sempre.

Comparado tudo isso, deste maio de 2014, das eleições gerais no Brasil, com alguns relatos do livro em questão, temos a constatação cristalina: além da enorme capacidade do autor de trafegar soberanamente entre o mítico e o real (a ponto de confundir seus biógrafos, como previa o escritor Guido Guerra antes de morrer), o livro surpreende, também, pela invejável atualidade de seus escritos e narrativas.
Para provar, vejamos o resumo de uma delas.

Num fim de tarde, no tempo em que a Assembleia baiana ainda funcionava na Praça da Sé, centro histórico de Salvador, onde hoje está a sede da Associação Baiana de Imprensa, o senador Pereira Moacir – "um dos filósofos do PSD"- fez uma observação ao autor, com ares de quem dá conselho. Isso, na hora em que Raimundo Reis era o centro das atenções de uma roda política na histórica Rua Chile, um dos lugares mais vigiados da cidade em tempos de mudanças dos ventos do poder e da política na Bahia e no País.

- Você tem um grave defeito como político. Possui uma memória privilegiada - alertou.
Pura verdade. Quando era deputado, o autor de "Enquanto é Tempo" sabia de cor e salteado o Regimento Interno da Assembleia Estadual. Assim, deu muito trabalho ao "amigo velho", presidente Orlando Spínola, "no encaminhamento de polêmicas e explosivas questões de ordem".

Conta Raimundo que foi, certa vez, de navio (Vera Cruz) ao Rio. No meio do caminho houve uma festa com muitas brincadeiras e participação dos passageiros. Cada um tinha que subir ao palco e fazer o que soubesse.

Chegando a sua vez, Reis anunciou que iria declamar "Os Lusíadas", a epopeia poética de Camões sobre os feitos dos navegadores portugueses, de fio a pavio. Muitos duvidaram, mas ele começou a plenos pulmões:

"As armas e os barões assinalados, que da ocidental praia lusitana, por mares nunca dantes navegados, passaram ainda além de Trabobana”... E foi em frente, sob olhares de incredulidade e admiração.


Resumo da história, que a ode é muito longa: Raimundo Reis saiu do palco nos braços de brasileiros e portugueses empolgados, passageiros como ele da incrível viagem do Vera Cruz. Todos gritavam: "Viva Portugal". "Viva o Brasil".


Sobrava então ao autor de "Enquanto é Tempo" a memória que faltou ao conterrâneo professor da UFBA, José Sérgio Gabrielli, ao falar na CPI do Senado sobre a efetiva participação e responsabilidade da companheira petista Dilma Rousseff, atual presidente da República, no nebuloso episódio da compra da Refinaria de Pasadena, quando ela presidia o Conselho Nacional de Petróleo.

Ou as informações que faltaram ao "duro" juiz Teori Zavascki, , motivo alegado para o recuo em julgamento de habeas corpus, da decisão de mandar soltar todos os presos pela Polícia Federal na escandalosa Operação Lava Jato, um dia depois de tirar da cadeia o ex-diretor da estatal metido no rolo. Este, continua em casa, leve e solto. Provavelmente, cuidando bem da memória (ou não?) para o caso de ter de contar o que fez e o que sabe.

Grande Raimundo Reis!

Vitor Hugo Soares é jornalista, editor do site blog Bahia em Pauta. E-mail: vitor_soares1@terra.com.br

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