O Brasil é um dos 31 países do mundo onde o voto é compulsório – imposição que hoje vai contra o desejo da maioria dos brasileiros.
Não faz nem dez anos que a paulistana Bianca Fraga caminhava pelas ruas
arborizadas do principal campus da Universidade de São Paulo (USP),
onde cursou linguística, e defendia sua visão de mundo em rodas
politizadas de amigos.
Ocupou a reitoria em protesto por mais de uma vez enquanto estudante.
Em junho do ano passado, engrossou a multidão de manifestantes que tomou
as ruas da capital paulista, em coro pelas mais diversas
reivindicações. Ela quer ser ouvida – mas não nas urnas.
Nas próximas eleições presidencias, em outubro, pretende votar em
branco. Se a legislação não a obrigasse, Bianca nem sequer compareceria a
uma central de votação. “Nenhum dos candidatos me representa”, afirma.
“O voto seria mais legítimo se tivéssemos liberdade para escolher se
queremos ou não entregá-lo a alguém.” A paulistana Bianca Fraga. Ela afirma que, se não fosse obrigada, não iria às urnas (Foto: Camila Fontana/ÉPOCA)...
Assim como Bianca, nunca tantos brasileiros se disseram contrários à
obrigação de ir às urnas, imposição prevista no Artigo 14 da
Constituição. Segundo uma pesquisa do instituto Datafolha, divulgada na
semana passada, 61% dos entrevistados discordam da regra. É uma rejeição
inédita desde que a pergunta começou a ser feita, em 1994. Não é só
isso. Segundo o levantamento, 57% dos eleitores, tal qual Bianca, não
votariam nas próximas eleições presidenciais se não fossem obrigados –
outro recorde. Grande parte dos descontentes são brasileiros com ensino
superior (71%) e renda familiar mensal acima de dez salários mínimos
(68%).
Gente que integra a classe média tradicional brasileira, mais
instruída. “A insatisfação reflete o descrédito da política, de um modo
geral, e do Congresso, em particular”, afirma o cientista político
Bolívar Lamounier, diretor da Augurium Consultoria. A pesquisa apontou
ainda outras razões: a falta de confiança no governo federal (72%) e o
pessimismo com a economia (70%) estão entre as explicações para a recusa
ao voto.
A obrigatoriedade foi implantada com
o Código Eleitoral de 1932. Era um Brasil diferente, de poucos
eleitores. Com a maioria das famílias vivendo em áreas rurais, além de
altíssimas taxas de analfabetismo (os analfabetos eram proibidos de
votar), o eleitorado da época restringia-se a somente 10% da população
adulta. A imposição tentava aplacar o temor de que essa participação
inexpressiva tirasse a legitimidade da eleição. De lá para cá, o
percentual de eleitores cresceu expressivamente no país. Segundo o
Tribunal Superior Eleitoral (TSE), cerca de 70% da população está hoje
apta a votar.
Atualmente, o voto é facultativo para analfabetos, idosos com mais de
70 anos e jovens com mais de 16 e menos de 18 anos. Os demais
brasileiros, se não comparecem às urnas no dia da votação, ainda que
para anular ou justificar a ausência em sua seção, devem prestar contas à
Justiça Eleitoral. Aqueles que ignoram esse dever podem pagar um preço
alto: são proibidos de prestar concurso público, pegar empréstimos em
bancos, tirar passaporte e carteira de identidade e renovar a matrícula
em universidades públicas. Uma pesquisa feita pela comissão eleitoral do
Reino Unido apontou que o Brasil – ao lado de Peru, Cingapura e
Austrália – tem as penas mais rigorosas entre os países com regimes
compulsórios de votação.
Os entusiastas do voto obrigatório argumentam que a democracia é
importante demais para ser opcional. O ato de votar constitui, para
eles, um dever, não um direito. Outro raciocínio dos favoráveis à
obrigatoriedade é a ideia de que, se o eleitor se omitir, o atraso
socioeconômico do país poderá se tornar mais grave. A regra é, dizem,
ainda uma maneira de incluir na sociedade as camadas sociais mais
afastadas das discussões essenciais ao desenvolvimento.
“O voto
compulsório, bem ou mal, teve o efeito de obrigar a elite política a se
conectar com os mais pobres”, afirma o cientista político Jairo Nicolau,
da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). De uma lista de 177
países, feita pelo Instituto Internacional para a Democracia e
Assistência Eleitoral (Idea), uma organização que promove a democracia, o
Brasil é um dos 31 que ainda mantêm um regime de voto compulsório. “O
fato de ser uma experiência pouco comum não significa que seja ruim”,
afirma Nicolau. Em muitos dos países com a imposição, a obrigatoriedade
fica restrita à teoria. Na prática, a lei não é aplicada.
Os contrários à participação compulsória na eleição afirmam que o
sistema não é compatível com a liberdade que se espera de uma democracia
consolidada. Segundo eles, forçar o cidadão a votar desencoraja sua
educação política. Num regime facultativo, muitos creem que só os
eleitores mais mobilizados e informados iriam às urnas. A mudança,
argumentam, combateria os votos obtidos de forma aleatória, por
candidatos que se beneficiam de maior presença nos meios de comunicação,
aparecem no alto da lista da urna eletrônica ou desfrutam um número
eleitoral fácil de memorizar.
Uma das preocupações quanto ao voto facultativo é a falta de garantia
de que o eleitor comparecerá às urnas. A participação dos eleitores tem
diminuído na maioria dos países ocidentais com regimes não compulsórios.
Os Estados Unidos registram uma taxa abaixo de 60% em toda eleição
presidencial desde 1968. No Reino Unido, 65% da população votou nas
eleições gerais de 2010, em comparação a 84% em 1950. O mesmo ocorre nos
países asiáticos. A Índia, que na semana passada concluiu uma maratona
de eleições gerais, as maiores do mundo, não ultrapassa a marca dos 67%
desde 1952.
A queda não é exclusiva de regimes facultativos. O comparecimento no
Brasil, embora compulsório, tem caído nas últimas décadas. Em 2006, 84%
dos brasileiros aptos a votar foram às urnas. Nas últimas eleições
presidenciais, em 2010, o percentual foi de 80%. Se o voto obrigatório
seduz cada vez menos eleitores, como seria se o Brasil adotasse o voto
opcional? Cientistas políticos acreditam que a votação variaria, de
acordo com a importância atribuída a cada eleição. Disputas
presidenciais poderiam atrair mais eleitores que pleitos municipais – ou
vice-versa. Na pesquisa do Datafolha, quatro em cada dez entrevistados
declararam que votariam mesmo que não fossem obrigados.
As taxas de participação das nações que desistiram do voto obrigatório
também diminuíram. O exemplo mais recente é o Chile, que migrou do voto
compulsório para o facultativo em 2011. Nas primeiras eleições
presidenciais após a reforma política, a participação no primeiro turno,
de 60% no pleito anterior, caiu para 50%. No segundo, diminuiu mais:
40%. A possível redução da participação nas urnas não preocupa o
cientista político Lamounier. “O Brasil está pronto para o voto
facultativo. O desejo de mudança reflete o sentimento de que o voto deve
ser entendido como um direito, não como um dever”, diz. Muitos
consideram haver um dilema entre quantidade e qualidade. Para outros, a
questão é mais simples: deixar o cidadão apenas com o direito, e os
políticos com o dever.
Fonte: ALINE RIBEIRO - revista Época - 27/05/2014 - - 14:22:38 BLOG do SOMBRA
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