Uma camisa oficial da seleção, da Nike, custa R$ 349,90, ou seja, quase a metade de um salário mínimo, que é de R$ 724.
Um juiz, então presidente de importante associação de magistrados, foi
convidado para um congresso de empresas contra a pirataria. No meio da
palestra, perguntaram: “O senhor compra produtos falsos?”
O juiz não se perturbou. Respondeu com outra pergunta: “Se o senhor
ganhasse salário mínimo, e seu filho de 10 anos lhe pedisse para comprar
uma camisa da seleção brasileira, o senhor compraria a camisa
falsa?”...
Uma camisa oficial da seleção, da Nike, custa R$ 349,90, ou seja, quase
a metade de um salário mínimo, que é de R$ 724. No Brasil, de acordo
com dados do Censo 2010, cerca de 45 milhões de pessoas ganham até um
salário mínimo. São todos torcedores. Impossível não comprar.
O preço do produto não condiz com seu mercado. Gera-se a exclusão
econômica da camisa da seleção. Patrocínios são indispensáveis à cultura
e ao esporte. Apoio empresarial também. Assim como respeitar direitos
autorais e de marca. Mas há limites.
Em boa hora a Copa do Mundo de 2014 levanta esta questão: Quais os
limites quando se trata de uso de símbolos nacionais? A lei traz alguns
critérios: não deixa registrar como marca “brasão, armas, medalha,
bandeira, emblema, distintivo e monumento oficiais, públicos, nacionais,
estrangeiros ou internacionais”. Mas ainda assim há fronteiras
indefinidas.
Afinal, as camisas estão impregnadas do que em inglês se chama com
certa elegância de “publicness”. Impregnadas endogenamente de interesse
público relevante. Será ela um bem cultural imaterial do Brasil, como
defendeu a Coca-Cola numa disputa judicial contra a CBF?
O Judiciário tem enfrentado essa questão. Em geral, diante de casos
como compra de camisas falsas com o símbolo da CBF, concede-se a
reparação do dano material, mas não de dano moral.
Pergunta-se: por que um cidadão compra uma camisa falsa? Não é pelo
emblema da CBF ou da Fifa. Nem pela nova gola, design ou tamanho da
manga. É pelo símbolo de nacionalidade que representa. Como se dissesse:
“Eu também quero competir pela pátria amada, Brasil”.
Diz, nos autos, em decisão recente, a ministra Nancy Andrighi, do
Superior Tribunal de Justiça: “As pessoas que adquirem os produtos
licenciados estão muito mais interessadas em ostentar algo que tenha
relação com a Seleção Brasileira de Futebol do que com a marca CBF
propriamente dita”.
Quem construiu o que a camisa da Seleção simboliza não foi uma empresa.
Foi a cultura, o talento e a paixão do Brasil pelo futebol. Foram
jogadores, torcedores, vitórias, garra, clubes, federações, mídia e
estádios públicos com recursos públicos.
Nesta Copa do Mundo, serão vendidas mais camisas falsas ou verdadeiras?
Ou subfalsas? O problema é que a legislação de proteção da marca é
irrealista e complexa. Merece mais discussão.
Por um lado, tem-se que proteger o direito autoral, marca e outros
direitos intelectuais. Por outro, ao se exigir que se cumpra uma lei
contrária à realidade do mercado, desmoraliza-se a lei, o sistema. Quem
planta a ilegalidade coletiva colhe a irresponsabilização coletiva. O
Estado Democrático de Direito e suas instituições perdem.
Quando qualquer empresa tem problemas legais relativos ao consumo de
seus produtos, discute a questão no Judiciário. No caso das marcas, a
lei criminalizou a compra do consumidor. A polícia pode apreender bens
em fiscalização de rotina ou após denúncia.
Mas, imaginem hoje, se a Polícia Federal vai promover a queima pública
das camisas da Seleção brasileira, com televisão ao vivo, como promovia
há alguns anos, queimas públicas de CDs e DVDs piratas.
A queima ajudou muito pouco na proteção a propriedade intelectual. O
que ajudou foi a modernização tecnológica, a música via internet por
preços acessíveis. Não era um problema de polícia. Era um problema de
mercado.
Se a polícia hoje fizer queimas púbicas com as camisas da Seleção, o
tiro sai pela culatra. O ônus é grande. Prejudicará a imagem da Polícia
Federal e a marca aos olhos dos torcedores.
O dano de longo prazo de radicais legislações irrealistas é que se
desmoraliza o sistema legal, a Polícia Federal e o Judiciário. Corrói-se
a crença de que as leis são feitas para serem cumpridas. Estimula-se a
ilegalidade porque de baixo risco. Causam-se danos de longo prazo ao
Estado de Democrático de Direito.
JOAQUIM FALCÃO
Professor da Fundação Getulio Vargas
Fonte: JOAQUIM FALCÃO - Correio Braziliense - 22/05/2014 - - 14:17:07
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