A
melhor forma de um jovem se precaver do uso de drogas ainda é seguir a
velha receita de seus pais — evitar as más companhias. Mas, para os
acadêmicos que defendem a política de redução de danos, o adolescente
que se afasta de um drogado é preconceituoso.
Há muitos anos, desde o final da
década de 80, o Estado brasileiro adotou, como estratégia de combate às
drogas, a política de redução de danos — dogma defendido por boa parte
dos intelectuais de todo o mundo, especialmente os que gravitam em torno
das universidades francesas. Trata-se de uma estratégia defensável,
desde que empreendida com responsabilidade — o que não vem ocorrendo no
Brasil. Como afirmei no artigo "A Ciência Viciada", publicado na seção "Tendências/Debates" da Folha de S. Paulo,
em 23 de março de 2009, a política de redução de danos adotada no país
nada tem de científica e não passa de "entulho ideológico do Maio de
68".
Exemplo disso é cartilha Drogas Psicotrópicas,
elaborada pelo Cebrid (Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas
Psicotrópicas), da Universidade Federal Paulista (antiga Escola Paulista
de Medicina), e referendada pelo próprio Ministério da Saúde. A
cartilha começou a ser produzida em 1987, em forma de folhetos. Até
2003, mais de 2 milhões de exemplares já tinham sido distribuídos no
país, o que levou o Cebrid a editá-los num opúsculo de 64 páginas,
disponível na Internet. Como informa o prefácio da obra, os folhetos têm
um caráter "ao mesmo tempo informativo e de prevenção ao abuso das
substâncias psicotrópicas" e são "dirigidos ao público em geral,
principalmente a estudantes a partir dos 12 anos de idade".
Começa aí o problema. É possível
fazer prevenção para crianças e adultos, sobre qualquer assunto,
especialmente sobre drogas, valendo-se, para os dois grupos, da
mesmíssima linguagem e dos mesmíssimos métodos? Não há nenhuma diferença
cognitiva e emocional entre crianças de 12 anos e adultos de 20, 40 ou
60 anos? A experiência de vida de uma criança de 12 anos é a mesma de um
adulto de 22, não havendo entre eles nenhuma mudança psicológica
fundamental capaz de interferir em sua percepção sobre o mundo, em
geral, e sobre as drogas, em particular?
Mesmo no interior de uma faixa
etária específica, os diferentes contextos sociais precisam ser levados
em conta em qualquer campanha de prevenção. Uma política de prevenção de
doenças, por exemplo, jamais poderá ser a mesma em regiões distintas,
ainda que os destinatários da campanha tenham a mesma idade. Entre
executivos de 40 anos da Bolsa de Valores, o risco das doenças cardíacas
fará das caminhadas uma estratégia de prevenção, enquanto entre
catadores de caranguejo da mesma idade, a higiene será um dos enfoques
principais, para evitar doenças infecciosas.
No caso de uma política de redução
de danos, o seu próprio nome determina o que ela deve ser — reduzir
danos implica em admitir que os danos já ocorreram. Logo, toda política
de redução de danos deve restringir-se ao grupo prejudicado por alguma
coisa a fim de que esse prejuízo seja reduzido. A campanha de prevenção
do Ministério da Saúde — aberta a todas as pessoas, inclusive crianças
da 6ª série do ensino fundamental — vale-se de uma linguagem comum para
todos, como se fosse conveniente falar de merla para uma menina de 12
anos que brinca de boneca e tem a proteção dos pais do mesmo modo que se
fala de droga para o menino de 12 anos que testemunha a mãe viciada em
crack fazendo sexo na sua frente para adquirir a droga.
Só esse grave problema didático já
seria mais do que suficiente para invalidar toda a política de redução
de danos do Ministério da Saúde. Nos moldes em que é praticada, ela não
passa de uma política de indução de danos, uma vez que leva a
experiência do drogado — inclusive sua linguagem e seus modos — para
pessoas que nunca viram drogas, como a maioria das crianças do ensino
fundamental. Ela parte do pressuposto de que toda criança de 12 anos tem
acesso a crack e precisa saber como ele funciona — não só os males que
causa, mas o prazer que provoca. O que é uma temeridade.
"A
campanha de prevenção do Ministério da Saúde vale-se de uma linguagem
comum para todos, como se fosse conveniente falar de merla para uma
menina de 12 anos que brinca de boneca e tem a proteção dos pais do
mesmo modo que se fala de droga para o menino de 12 anos que testemunha a
mãe viciada em crack fazendo sexo na sua frente para adquirir a droga"
Desde que o norte-americano David
Elkind, discípulo de Piaget, publicou, em 1967, um clássico estudo sobre
o egocentrismo na adolescência (retomado em 1978), tornou-se amplamente
aceito na psicologia que o adolescente costuma ter um pensamento mágico
em relação à vida, que faz com que se considere invulnerável, capaz de
se expor a situações de risco sem ser atingido por elas. Daí, por
exemplo, os casos de gravidez precoce, que continuam crescendo, por mais
que o adolescente seja informado dos riscos de uma relação sexual
desprotegida.
O mesmo vale para as drogas, lícitas
e ilícitas. Todo aquele que toma sua primeira dose de álcool ou fuma
seu primeiro cigarro — geralmente na adolescência, num momento mágico
inaugural — jamais consegue se imaginar bêbado ou devastado pelo câncer.
Por isso, é uma irresponsabilidade discutir abertamente todo tipo de
drogas com crianças e adolescentes, porque não há nenhuma garantia de
que a descrição das conseqüências devastadoras do vício será suficiente
para sobrepujar a sedução dos efeitos prazerosos do uso. Até mesmo os
males causados pelas drogas podem despertar a curiosidade do
adolescente, que tende a se fantasiar de herói em situações de perigo e
por isso almeja aventuras.
A cartilha Drogas Psicotrópicas
não tem esse tipo de preocupação. Ela padece do mal congênito do
intelectual moderno: a idéia de que tudo pode ser dito, de qualquer
modo, para qualquer pessoa, inclusive crianças. Salvo se o ouvinte ou
leitor integrar o rol oficial de excluídos. Nesse caso, é
preciso medir palavras, para não ferir sua susceptibilidade. Partindo
desse princípio, a cartilha beira a esquizofrenia: ora é vulgar,
recorrendo à gíria das bocas-de-fumo; ora é acadêmica, enredando-se em
digressões bizantinas. Um exemplo de vulgaridade é o trecho que define o
termo psicotrópico:
"Mais complicada é a seguinte palavra: psicotrópico. Percebe-se claramente que é composta de duas outras: psico e trópico. Psico
é fácil de se entender, pois é uma palavrinha grega que relaciona-se a
nosso psiquismo (o que sentimos, fazemos e pensamos, enfim, o que cada
um é). Mas trópico não é, como alguns podem pensar, referente a
trópicos, clima tropical e, portanto, nada tem a ver com uso de drogas
na praia! A palavra trópico, aqui, se relaciona com o termo tropismo, que significa ter atração por. Então, psicotrópico
significa atração pelo psiquismo, e drogas psicotrópicas são aquelas
que atuam sobre nosso cérebro, alterando de alguma maneira nosso
psiquismo".
Notem o entusiasmo com que o texto
se refere a usar droga na praia, chegando a recorrer ao ponto de
exclamação, como se fizesse eco ao apitaço dos usuários de maconha em
Ipanema. É inegável que a frase exclamativa naturaliza o uso de drogas
na praia, o que não é raro nos textos acadêmicos. No artigo "Poder
Indisciplina: Os Surpreendentes Rumos da Relação de Poder", publicado no
livro Indisciplina na Escola: Alternativas Teóricas e Práticas (Summus Editorial, 1996), organizado por Julio Groppa Aquino, a psicóloga Marlene Guirado, doutora em psicologia escolar pela USP, onde leciona, também se refere aos apitaços dos usuários de maconha nas praias cariocas:
"Se
a norma ou a normalização são o objetivo das práticas disciplinares,
porque não supor a possibilidade de que se normatize também na
resistência? Ilegalismos e ilegalidades até podem ser fruto da
disciplinarização. Para exemplificar um desses 'tiros que saem pela
culatra', cabe comentar um fato que tem sido noticiado pela imprensa do
Brasil neste janeiro de 1996. Verão quente (em todos os sentidos) nas
praias cariocas. A polícia (com certeza no discurso oficial) se vê às
voltas com o combate às 'ondas de apito' que anunciam a aproximação de
policiais, para que os usuários de maconha, sobretudo, possam se safar
de serem pegos. Há uma organização difusa de colaboradores na
distribuição de apitos na areia. Simpatizantes, usuários e militantes
esforçam-se pela causa, pela liberdade de costumes, e, num curioso jogo
de esconde-esconde, batalham, dão entrevistas a jornais e revistas e,
com isso, naturalizam mais e mais práticas escusas por lei. Nesse clima,
é cena quase insólita a entrevista do Chefe da Polícia do Rio de
Janeiro à TV, dizendo nervosamente, em meio ao desalinho dos cabelos e
da camisa branca, atravessada pelos cinturões pretos de balas: "nós
vamos calar a boca desses apitos", ou coisa que o valha. Segmentos da
população e polícia insurgem como dois grupos, numa espécie de desafio
de viola, pondo no discurso e, portanto legitimando, tanto a ação
repressiva quanto a abusiva. Há um acréscimo aí, da divulgação, na
mídia, daquilo que sabemos acontece em relativo silencio. Muito mais,
certamente, acontece no silêncio midiológico, como as implicações de
policiais no trafico mesmo das drogas; não dos apitos."
O artigo de Marlene Guirado trata da
indisciplina escolar e baseia-se nas idéias de Michel Foucault, autor,
entre outras obras, de Vigiar e Punir. Próxima das pedagogas Áurea Guimarães e Sueli Itman Monteiro,
ainda que mais moderada no culto à transgressão, Guirado afirma que
"estigmatizar e reprimir", por meio de procedimentos institucionais,
"incita as práticas que se quer eliminar ou combater". Recorrendo a
Foucault, ela afirma, textualmente, que, em qualquer cenário
institucional, "fica difícil caracterizar mocinhos e bandidos". Mas é
desmentida por seu próprio texto.
Como se percebe na descrição que faz
dos "apitaços" em Ipanema, a turma do apito é constituída de idealistas
(simpatizantes, usuários, militantes) que lutam pela "liberdade dos
costumes", enquanto a polícia carioca é um valhacouto de traficantes de
drogas, cujo chefe é um sujeito desalinhado, nervoso, que vocifera
ameaças com um cinturão de balas pretas exposto na camisa branca.
Releiam a citação de Marlene Guirado e me digam se há alguma dúvida
sobre quem estrela o mocinho e quem protagoniza o bandido nessa história
de uso de drogas em Ipanema.
Por isso, nem é de se estranhar a
naturalidade com que o Cebrid trata os que usam drogas nas praias. Pelo
texto de Marlene Guirado, escrito em 1996, portanto há 13 anos,
percebe-se que a simpatia pelos usuários de droga, especialmente a
maconha, não é uma posição pontual deste ou daquele pesquisador — ela
tem grande lastro acadêmico, como futuras análises deste blog hão de
mostrar.
"A
cartilha ensina às crianças a gíria dos usuários de crack. E descreve o
prazer proporcionado pela droga por meio de uma analogia indevida: a
comparação com o orgasmo. Por acaso, o orgasmo é comum na vida de uma
criança de 12 anos para servir de referência para o prazer do crack?
Isso é aguçar dupla e criminosamente a curiosidade das crianças"
Mesmo apostando na comunicação como estratégia de prevenção do uso de drogas, os autores da cartilha Drogas Psicotrópicas
não são capazes de compreender a ética que marca compulsoriamente a
palavra. Todo ato de enunciação é também um ato de escolha e adequação,
logo, é um ato moral. "Palavra quando acesa não queima em vão" — ensina o
grande poeta maranhense José Chagas (natural da Paraíba e autor de Maré/Memória).
Cada contexto exige determinada linguagem, sendo a norma culta da
língua — com o vocabulário mais referencial e menos afetivo de sua
expressão formal — a que melhor se adéqua ao ambiente escolar. Mas os
autores da cartilha não sabem disso, pois, ao mencionar os termos gregos
e latinos usados pela medicina na nomenclatura das drogas, afirmam:
"Se
alguém achar que palavras complicadas, de origem grega ou latina,
tornam a coisa mais séria ou científica (o que é uma grande besteira!), a
seguir estão algumas palavras sinônimas".
É como se fosse possível continuar sério, numa aula de educação sexual, substituindo vagina e pênis
pelos seus sinônimos de banheiro público, que não ouso escrever aqui. A
cartilha faz isso em relação à droga ao trazer para o universo das
crianças toda a gíria dos usuários de crack, como "pipada" ou "fissura".
O mesmo se dá com todas as outras drogas. Além disso, descreve o prazer
proporcionado pelo crack por meio de uma analogia indevida — a
comparação com o orgasmo, como se vê neste trecho:
"Além
desse 'prazer' indescritível, que muitos comparam a um orgasmo, o crack
e merla provocam também um estado de excitação, hiperatividade,
insônia, perda de sensação do cansaço, falta de apetite."
Essa cartilha se diz adequada para
crianças de 12 anos. Por acaso, nesta idade, o orgasmo já é comum na
vida de uma criança para servir de referência para o prazer do crack e
da merla? Isso não é aguçar dupla e criminosamente a curiosidade das
crianças? Muitos intelectuais vão retrucar que há gravidez na
adolescência, sinal de que as crianças estariam tendo orgasmo. Mas esses
casos continuam sendo raros na infância, ainda que escabrosos, daí a
grande dimensão que alcançam na mídia, dando a impressão de que toda
menina de 12 anos namora e faz sexo, devendo trocar a boneca pela
camisinha.
Bem que o MEC tem feito um esforço nesse sentido, não apenas implantando máquinas automáticas de preservativos nas escolas, mas até mesmo colocando pênis de borracha na mão de meninas de 12 anos. Todavia, a atitude imoral e criminosa do Ministério da Educação — à luz do bom senso, da ética e das leis — não significa que o sexo se tornou o pão nosso de cada dia das crianças, tanto que as filhas das autoridades e dos acadêmicos não são obrigadas a manipular pênis de borracha nas caras e protegidas escolas particulares onde estudam. Essa pedagogia de sex shop só é imposta nas indefesas escolas públicas, que se tornaram aterro sanitário das faculdades de pedagogia.
Bem que o MEC tem feito um esforço nesse sentido, não apenas implantando máquinas automáticas de preservativos nas escolas, mas até mesmo colocando pênis de borracha na mão de meninas de 12 anos. Todavia, a atitude imoral e criminosa do Ministério da Educação — à luz do bom senso, da ética e das leis — não significa que o sexo se tornou o pão nosso de cada dia das crianças, tanto que as filhas das autoridades e dos acadêmicos não são obrigadas a manipular pênis de borracha nas caras e protegidas escolas particulares onde estudam. Essa pedagogia de sex shop só é imposta nas indefesas escolas públicas, que se tornaram aterro sanitário das faculdades de pedagogia.
Mas esse tema da educação sexual
será abordado oportunamente. Voltemos à análise da cartilha do Cebrid.
Ao afirmar que o consumo de álcool é um costume extremamente antigo, a
cartilha frauda a história, como faz quase sempre que trata do passado
das drogas:
"Registros
arqueológicos revelam que os primeiros indícios sobre o consumo de
álcool pelo ser humano datam de aproximadamente 6000 a.C., sendo,
portanto, um costume extremamente antigo e que tem persistido por
milhares de anos. A noção de álcool como uma substância divina, por
exemplo, pode ser encontrada em inúmeros exemplos na mitologia, sendo
talvez um dos fatores responsáveis pela manutenção do hábito de beber,
ao longo do tempo."
Ora, se a noção de álcool como
substância divina foi um dos fatores responsáveis pelo alcoolismo no
tempo, então, a prostituição sobreviveu não pelo imperativo biológico
que leva homens a desejarem mulheres, mas porque em muitas culturas da
Antigüidade havia prostitutas sagradas, o que teria levado os deuses a
advogarem em causa própria, impedindo que a chama divina do sexo se
apagasse nas águas passadas da história.
Parece haver um tom
anti-religioso nessa desnecessária associação entre álcool e divindade,
perfeitamente dispensável num texto destinado a crianças de 12 anos que,
supostamente, tem o objetivo de combater as drogas. As salas de aula
são heterogêneas e afirmações do gênero podem suscitar debates
desnecessários, capazes de tirar o foco da questão das drogas.
Se um professor resolve trabalhar
esse texto com seus alunos, como recomenda o MEC, ele corre o risco se
ver enredado numa disputa entre doutrinas, que não conseguirá resolver.
Para uma criança evangélica, por exemplo, o alcoolismo jamais pode ser
associado a Deus, sendo obra direta da ação do Diabo entre os homens. Se
for filha de pais recém-convertidos, fervorosos e de espírito
missionário, a criança pode interpretar as antigas mitologias que
cultuavam o álcool como religiões do Diabo, trazendo a discussão para o
presente e investindo contra as religiões afro-brasileiras que fazem
despacho utilizando cachaça.
Pode até mesmo acusar os católicos de
idolatria, por acreditarem que o vinho se torna sangue divino depois de
consagrado pelo sacerdote. E mesmo a criança que não professa religião
alguma achará estranha essa associação entre Deus e álcool.
Antropologicamente, o homem só pode conceber Deus como perfeito ou esse
ser superior não seria Deus. A sede de absoluto é uma sina do homem.
Richard Dawkins, por exemplo, não cultua Deus, mas adora a Ciência, em
quem deposita uma fé cega. O mesmo ocorre com os arautos da redução de
danos, que acreditam até em milagre — a recuperação de todos os
drogados, qualquer que seja o grau do seu vício.
"Não
é adequado, num texto de prevenção às drogas para crianças, contar que o
cientista que fez uma importante descoberta foi comemorá-la num bar. O
politicamente correto só vale para o cinema, criticado pelos acadêmicos
por mostrar belas atrizes fumando? Uma universidade que persegue até
propaganda de leite em pó não pode ser tão desleixada num texto sobre
drogas destinado a crianças"
A hipótese de que há um tom
anti-religioso no texto — proposital e desnecessário — é corroborada
pelo capítulo que trata dos barbitúricos, drogas capazes de reduzir a
atividade de determinadas áreas do cérebro, sendo usadas como
medicamentos, inclusive no controle da epilepsia. Segundo a tradição, o
nome barbitúrico decorre de uma junção entre Bárbara e uréia,
já que a substância teria sido descoberta num dia 4 de dezembro, dia de
Santa Bárbara, padroeira dos mineiros e artilheiros, que, na Europa,
tinham o hábito de comemorar seu dia em bares. O químico alemão Adolf
Baeyer, logo depois de sua importante descoberta, foi a um bar e, vendo
os mineiros em festa, bebeu com eles e homenageou sua padroeira. Mas a
cartilha do Cebrid conta uma história bem diferente:
"Essas
drogas foram descobertas no começo do século XX, e diz a história que o
químico europeu que fez a síntese de uma delas pela primeira vez —
grande descoberta — foi comemorar em um bar. E, lá, encantou-se com uma
garçonete, linda moça que se chamava Bárbara. Em um acesso de
entusiasmo, nosso cientista resolveu dar ao composto recém-descoberto o
nome de barbitúrico".
O relato de que ele teria
homenageado uma namorada chamada Bárbara também consta na tradição sobre
a origem dos barbitúricos, mas é muito menos forte que a história de
sua homenagem à santa. Porém, qualquer que seja a verdade sobre a origem
da palavra barbitúrico, uma coisa é certa: um texto destinado a
crianças e adolescentes tem de ser até mais cuidadoso do que uma tese
de doutorado, porque, na tese, basta não errar cientificamente, já no
texto para crianças também é necessário adequar-se à psicologia delas.
Logo, não é adequado — num texto de prevenção às drogas para crianças — contar que o cientista que fez uma importante descoberta foi comemorá-la num bar. Ou o politicamente correto só vale para o cinema e a televisão, criticados pelos acadêmicos por mostrar belas atrizes fumando? Uma universidade que persegue até propaganda de leite em pó — a ponto de praticamente extingui-la dos meios de comunicação — não pode ser tão desleixada num texto sobre drogas destinado a crianças.
Logo, não é adequado — num texto de prevenção às drogas para crianças — contar que o cientista que fez uma importante descoberta foi comemorá-la num bar. Ou o politicamente correto só vale para o cinema e a televisão, criticados pelos acadêmicos por mostrar belas atrizes fumando? Uma universidade que persegue até propaganda de leite em pó — a ponto de praticamente extingui-la dos meios de comunicação — não pode ser tão desleixada num texto sobre drogas destinado a crianças.
Como se vê, apenas num pequeno
parágrafo da cartilha de redução danos os erros se somam. Os autores
erram até a data de descoberta dos barbitúricos. Essas drogas não "foram
descobertas no começo do século XX", como diz o texto, mas, como já se
afirmou aqui, cerca de 40 anos antes, em 4 de dezembro de 1864, pelo
cientista alemão Adolf Baeyer (1835-1917), Prêmio Nobel de Química de
1905.
Ou seja, uma cartilha paradidática, patrocinada pelo Ministério da Saúde, com o apoio do Ministério da Educação, comete falhas primárias de informação, errando uma data importante com uma diferença de quase meio século. Se os pesquisadores do Cebrid não foram suficientemente criteriosos para consultar uma enciclopédia antes de escreverem uma cartilha para milhões de alunos do ensino básico, e oferecem informações históricas completamente erradas a respeito da origem de algumas drogas, é óbvio que também podem ter sido negligentes nas informações técnicas a respeito delas.
Ou seja, uma cartilha paradidática, patrocinada pelo Ministério da Saúde, com o apoio do Ministério da Educação, comete falhas primárias de informação, errando uma data importante com uma diferença de quase meio século. Se os pesquisadores do Cebrid não foram suficientemente criteriosos para consultar uma enciclopédia antes de escreverem uma cartilha para milhões de alunos do ensino básico, e oferecem informações históricas completamente erradas a respeito da origem de algumas drogas, é óbvio que também podem ter sido negligentes nas informações técnicas a respeito delas.
Os erros da cartilha chegam a ser
irônicos. Ao falar dos solventes, o Cebrid conta que, em 1991, uma
fábrica de cola do interior do Estado de São Paulo fez ampla campanha
publicitária afirmando que finalmente havia fabricado uma cola de
sapateiro "que não era tóxica e não produzia vício", porque não continha
tolueno. Os autores da cartilha indignam-se: "Essa indústria teve um
comportamento reprovável, além de criminoso, já que o produto anunciado
ainda continha o solvente n-hexano, sabidamente bastante tóxico".
Ora, como classificar, então, a
atitude do próprio Cebrid, que, ao longo da cartilha, fornece o nome de
fantasia de todas as drogas vendidas no mercado, exibindo o selinho de copyright no
alto de cada marca de cola de sapateiro, como se estivesse fazendo
publicidade do produto? Nem o jornalismo revela o nome comercial de
medicamento tarja-preta em suas reportagens, para não induzir a
automedicação. Mas a cartilha do Cebrid fornece até o nome de fantasia
do propoxifeno (substância utilizada como substituto da heroína pelos
viciados).
E ainda explica para as crianças de escola o modo mais
freqüente de usá-lo — através de injeção na veia. E se o adolescente
ficar desacorçoado, achando que não poderá comprar essas e outras
drogas, por precisar de receita especial, o Cebrid informa: "Algumas
farmácias desonestas, para ganhar mais dinheiro, vendem essas
substâncias por baixo do pano". A cartilha antecipa até as tendências do
mundo das drogas, num tom de quem recomenda aos retrógrados usuários
brasileiros a modernidade de usuários de drogas ingleses e
norte-americanos:
"Nos
Estados Unidos, a metanfetamina (uma anfetamina) tem sido muito
consumida na forma fumada em cachimbos, recebendo o nome de 'Ice'
(gelo). Outra anfetamina, metilenodioximetanfetamina (MDMA), também
conhecida pelo nome de 'êxtase', tem sido uma das drogas com maior
aceitação pela juventude inglesa e agora, também, apresenta um consumo
crescente nos Estados Unidos."
Notem que a palavra aceitação é
completamente absurda ao se falar do consumo de drogas, especialmente
numa cartilha destinada a crianças e adolescentes. Quando se fala da
aceitação de um produto qualquer pelos consumidores, fala-se de uma
relação de livre-arbítrio entre quem compra e quem vende. Por mais que a
publicidade seja capaz de influenciar e até condicionar o consumidor, o
ato de comprar um perfume, uma roupa, um sapato, é pautada por uma
série de atos racionais, previamente acertados, entre comprador e
vendedor.
Mesmo que se trate de um consumidor impulsivo, ele compra o
produto às claras, escolhendo, experimentando e pagando, o que pressupõe
um mínimo de decisão da sua parte, mediada por uma série de relações
sociais institucionalizadas, que vão desde a fonte de renda necessária
para comprar o produto até o Código de Defesa do Consumidor, que lhe
permite devolvê-lo, caso não fique satisfeito.
Logo, se muitos
consumidores, agindo dessa forma, levam para casa o perfume de marca X,
pode-se falar que aquele perfume está tendo grande aceitação no
mercado, pois ele não se impõe arbitrariamente ao consumidor, precisa
ser aceito por eles. Mas não dá para falar de aceitação quando
se trata de jovens consumindo drogas numa balada. Quase sempre o jovem
experimenta a droga sob a influência de amigos, numa situação em que sua
capacidade de refletir encontra-se fortemente inibida.
A dança
frenética, o som ensurdecedor, a sedução de quem oferece a droga e mais o
álcool que costuma antecedê-la são fatores que transformam a droga de
produto em fetiche. Logo, não dá para falar que ela é aceita pelo consumidor. Na verdade, é quase imposta já na primeira vez em que ele a consome.
A melhor forma de um jovem se
precaver do uso de drogas ainda é seguir a velha receita de seus pais —
evitar as más companhias. Mas a cartilha sobre drogas do Cebrid não faz,
em nenhum momento, esse tipo de recomendação. É como se o jovem, uma
vez dispondo do conhecimento técnico sobre drogas, estivesse apto a
evitá-las em qualquer ambiente. Na verdade, usar ou não usar droga é uma
decisão muito mais emocional do que racional, tornando o conhecimento
ou desconhecimento sobre as substâncias psicotrópicas uma questão
secundária.
Prova disso é que o uso de drogas sempre foi
proporcionalmente maior entre intelectuais do que no restante da
população, como mostra qualquer pesquisa atual sobre o assunto. E mesmo o
intelectual é levado a consumir drogas por influência do meio, não por
decisão racional. Entretanto, afastar-se das más companhias não é mais
conselho que se permita às escolas oferecer ao aluno.
Pelo contrário,
toda pedagogia contemporânea alicerça-se no principio de cabe aos
cordeiros reeducar os lobos. Em reportagem da Agência Brasil sobre a epidemia de crack no país, a psicóloga e socióloga Sílvia Ramos,
doutora em Saúde Pública pela Fiocruz e coordenadora do Centro de
Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes, afirma:
"Os próprios jovens são muito preconceituosos e contribuem para isolar o adolescente que usa crack. Ele se descontrola e rapidamente se torna dependente. E isso não contribui para que ele peça ajuda, peça socorro" (grifo meu).
A que ponto chegamos. Em seu tempo,
Durkheim já indagava profeticamente: "De que serviria uma educação que
levasse à morte a sociedade que a praticasse?" Pois essa educação já
chegou. A educação que se pratica hoje no Brasil está levando à morte a
nossa sociedade. O pai que entrega seu filho para a escola pública não
sabe que o está matriculando na escola do crime e que só o acaso poderá
salvá-lo. Se uma criança ou adolescente afasta-se de um usuário de
crack, a própria escola — ao invés de estimulá-lo a manter essa atitude —
tacha a sua prudência como preconceito. E não só isso: culpa-o também
pelo descontrole do viciado.
É isso que a psicóloga e socióloga
Silvia Ramos entende por "segurança e cidadania", como diz o pomposo
nome do núcleo que ela dirige numa universidade conceituada, com 105
anos de existência? Kant ensinava que o homem deve agir de tal maneira
que a máxima que norteia sua ação possa se tornar uma regra universal,
valendo para todos os homens.
Mas é pouco provável que a doutora Sílvia
Ramos e seus pares sigam a ética kantiana.
Se um deles tiver uma filha de 15 anos e a menina resolver terminar um namoro ao descobrir que o namorado é viciado em crack, duvido que eles lhe digam: "Não seja preconceituosa, menina! Continue com ele para ajudar na sua recuperação". Obviamente, os doutores universitários não são loucos — eles jamais aplicam na escola privada onde estudam seus próprios filhos as teses que com desencaminham, na escola pública, os indefesos filhos dos pobres.
Se um deles tiver uma filha de 15 anos e a menina resolver terminar um namoro ao descobrir que o namorado é viciado em crack, duvido que eles lhe digam: "Não seja preconceituosa, menina! Continue com ele para ajudar na sua recuperação". Obviamente, os doutores universitários não são loucos — eles jamais aplicam na escola privada onde estudam seus próprios filhos as teses que com desencaminham, na escola pública, os indefesos filhos dos pobres.
(Em breve, na próxima postagem, conheça a fraude cientifica — em defesa da cocaína — perpetrada pelo Ministério da Saúde.)
25 de maio de 2014
José Maria e Silva
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