segunda-feira, 16 de junho de 2014

Assuntos Estratégicos: "Mobilidade urbana é um inferno no país"





Ministro de Assuntos Estratégicos vê a população insatisfeita com os serviços prestados pelo governo e com a demora dos investimentos.


O economista Marcelo Neri tem uma das missões mais espinhosas na Esplanada: explicar o descontentamento dos brasileiros à sociedade e ao próprio governo. Alçado ao cargo de ministro-chefe da Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) após presidir o Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), ele busca justificativas não apenas com números. ...

 

“Se quisermos entender o Brasil e os brasileiros, temos que entender não o aspecto objetivo, mas também o subjetivo”, comenta. 

Para ele, os ganhos dos brasileiros vão muito além do padrão de consumo: alcançam a habitação e o mercado de trabalho. Mas, depois de 10 anos, tais conquistas já são dadas como garantidas pelas pessoas. 

As aspirações cresceram, o que acaba, muitas vezes, alimentando queixas. E elas se juntam a um tipo de insatisfação bem mais forte, o das pessoas de renda mais alta. 

Elas computaram ganhos menores, estreitando a diferença entre seu padrão de vida e o dos mais pobres. Assim, a etapa seguinte do desenvolvimento, apostou Neri, está longe de ser simples. Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista ao Correio.

 

Tornou-se comum dizer que a situação no Brasil melhorou da porta para dentro, mas não da porta para fora. É o que ocorreu?



A própria presidente Dilma disse isso. Por que isso ocorre? Estamos em um país grande, diverso e desigual. Então, é difícil dar uma resposta que contemple o país inteiro. Um grande ganho que houve foi no mercado de trabalho fora de casa. 

As pessoas conseguiram mais empregos formais. E há cada vez mais famílias com casa própria, o que é muito importante. O problema é que, entre essas duas conquistas, entre a casa e o trabalho, a vida está mais complicada. 

As pessoas vivem o inferno da mobilidade urbana. Muita gente comprou carro, mas há carência de políticas públicas e de investimentos públicos. A infraestrutura demora, há defasagens, enquanto o Bolsa Família e o aumento do salário mínimo têm efeito instantâneo. Mesmo o VLT (veículo leve sobre trilhos), que é mais rápido do que o metrô, demora muito para ser implantado. 

 

Quem está mais insatisfeito?



A nova classe média não está mais insatisfeita pelas pesquisas que tenho visto. Houve conquistas, e as pessoas buscam mais. Querem ser notadas também, o que explica o rolezinho. Mas não vêm daí os manifestantes que, inicialmente, ocuparam as ruas em junho do ano passado. Essas são pessoas dos grupos de maior renda, que tiveram menor ganho. 

A analogia da Belíndia, criada pelo Edmar Bacha (segundo o qual o Brasil convivia com a riqueza belga e miséria indiana nos anos 1980), continua atual, com um sentido diferente. O lado indiano do Brasil cresce tanto quanto a Índia hoje. 

E o lado belga do Brasil anda tão devagar quanto a Bélgica. Os 5% mais pobres tiveram, de 2001 a 2012, aumento da renda por pessoa de 138%, já descontada a inflação. Já os 5% mais ricos computaram alta de 26%. Essas pessoas não gostam tanto da situação, por motivos compreensíveis.

 

Os números são suficientes para explicar as diferenças?



Se quisermos entender o Brasil e os brasileiros, temos que entender não o aspecto objetivo, mas também o subjetivo. Vejo na situação de hoje, de um lado, o efeito aspiração, que é mais importante para essa nova classe média. 

E há o que a literatura chama de efeito comparação, que é olhar para o vizinho, algo mais sociológico. Isso também ajuda a explicar o que ocorre. 

A classe média tradicional se acostumou com a altíssima desigualdade. Mas a distância em relação à empregada e ao peão de obra hoje não é a mesma de antes. Há também a globalização, a internet, a conectividade, que permitem comparações das pessoas com o resto do mundo. As informações circulam com muito mais velocidade.

 

Esse tipo de mudança é inédita no país?



Ao olhar a história brasileira nos últimos 60 anos, é possível ver que, de 10 em 10 anos, o Brasil vive uma grande mudança, com mobilização seguida por transformação. É possível lembrar pelas efemérides deste ano. Vivemos os 50 anos do golpe, 40 anos do início do processo de abertura, com a Revolução dos Cravos (em Portugal) e a derrota do governo (o regime militar brasileiro) nas urnas. 


Em 1984, houve o auge da luta pela democratização, com as Diretas Já. Em 1994, tivemos o Plano Real. E faz uma década que estamos crescendo com redução de desigualdade. 

Depois de 10 anos, as pessoas se adaptam à nova realidade, passam a ter novas aspirações. E os que não ganharam tanto ficaram com demandas e frustrações acumuladas. Neste ano, temos Copa e eleições, que são eventos catalisadores.

 

Como se explicam as queixas em relação a serviços públicos tradicionais, como a educação? 



É o efeito aspiração da nova classe média. No Pisa (exame internacional) de 2003, o Brasil tinha a pior nota do mundo de matemática. Quando se pega a mudança de 2003 a 2013, é o que deu o maior salto. Agora, há seis ou sete países piores. 


Não é nada para celebrar, mas houve a mudança. Entre as prioridades das pessoas, a educação estava em sétimo lugar na lista. Hoje, está em segundo. Só perde para a saúde. Antes, as pessoas achavam que a educação, para a qual não davam importância, era boa. Agora, aprenderam o que é educação decente, algo que a gente ainda não tem. 

 

 

"O brasileiro quer um caminho do meio, não quer uma situação muito extrema. Quer crescimento. Quer Estado forte, mas quer um setor privado forte também”

 

O Estado será capaz e responder a esses anseios?


Sozinho, não. Sou defensor de parcerias público-privadas (PPP). É preciso aproveitar o que há de bom dos dois lados para tentar diminuir as dificuldades. O setor privado não é particularmente bom para promover equidade, mas sim para a eficiência. O brasileiro quer um caminho do meio, não quer uma situação muito extrema. Quer crescimento. Quer Estado forte, mas quer um setor privado forte também. O grande caminho para isso é a democracia. Teremos eleições neste ano, e as aspirações poderão se materializar em políticas.

 

Há divergências nos números de redução da miséria que o próprio governo usa. Como isso se explica?
 

São métricas diferentes. A redução de 22 milhões no número de pessoas em pobreza extrema no governo Dilma tem como base o cadastro único, que é mais completo. Outros números mostram outros resultados. A Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, do IBGE)) apresenta outro dado. 


Mas também traz resultados bastante auspiciosos: redução, entre 2011 e 2012, de 15,9% da pobreza extrema e de 18% da pobreza. Estudos mais recentes mostram que, apesar do desaquecimento da economia, isso continua. Há um descolamento no Brasil entre o crescimento do PIB e os resultados da Pnad. 

A diferença é quatro para um, no caso dos mais pobres. Isso continua nos antecedentes que tenho acompanhado pela Pesquisa Mensal de Emprego (PME), do IBGE, e dados a Previdência.

 

"Os 5% mais pobres da população tiveram, de 2001 a 2012, aumento da renda por pessoa de 138%, já descontada a inflação. Já os 5% mais ricos computaram alta de 26%”

 

Por que os dados mostram queda na redução da desigualdade?


A desigualdade parou de cair, mas de uma maneira diferente: os mais ricos tiveram maior crescimento de renda, assim como os mais pobres: os dois extremos. Isso pode ser efeito do Brasil sem Miséria.

 

Violência assusta

 


 

A violência urbana e o péssimo serviço de transporte urbano tiram o sono da aposentada Sandra Marques, 54 anos. “A sensação que tenho hoje é de total ausência do Estado. Cobram tantos impostos, mas não vemos nada revertido a nosso favor”, afirma. Para ela, havia um conformismo com os assaltos e mortes ocorridos nas ruas. “Mas, hoje, sabemos que não estamos mais seguros nem dentro de casa. A violência avançou sobre nós de uma forma impressionante”, acrescenta.

 

Sandra ressalta que, quase todas as semanas, precisa sair de casa para fazer exames médicos, pois teve de se submeter a uma cirurgia bastante complicada. Como não tem carro, recorre ao transporte público. “É assustador. Há dias em que espero até uma hora por um ônibus. Pior, já fiquei várias vezes no meio do caminho porque o veículo no qual eu estava quebrou”, assinala. “Infelizmente, vivemos de promessas não cumpridas de nossos governantes. Então, como não ficar decepcionada?”, indaga.

 

A insatisfação é grande também para Gabriela Dias Peixoto, 15, moradora de Ceilândia. Ela passou a estudar em uma escola particular há dois anos, devido ao péssimo serviço prestado pelo governo. “O ensino público está muito aquém do que o cidadão merece”, avalia ela, que ainda se queixa do transporte coletivo. “Não são raras as vezes que espero mais de 40 minutos por um ônibus que passa por ruas ou estradas malcuidadas, cheias de buracos”, afirma.

 

Retorno

 

No entender do professor João Saboia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), ainda vai demorar para que os brasileiros possam ter um retorno mais adequado dos tributos que recolhem ao Estado, pois o inchaço da máquina pública engole boa parte dos recursos que poderiam ser aplicados em melhoria da infraestrutura, da educação e da saúde. Ele destaca ainda que, para os trabalhadores terem novos aumentos de renda, em um quadro de inflação mais alta, será necessário elevar a produtividade, “que é baixa, sobretudo no setor de serviços, no qual foram criados mais postos”. Isso passa obrigatoriamente, ele explica, por ganhos na educação. 

 

PIB e desemprego


Apesar de o governo garantir que os brasileiros não se preocupam muito com o baixo crescimento da economia, o ritmo lento do Produto Interno Bruto (PIB) está incomodando, sobretudo pela perspectiva de que o desemprego pode aumentar. Na avaliação dos economistas, a se confirmar a queda da atividade no segundo trimestre do ano, indústria e comércio podem começar a cortar postos de trabalho, prejudicando as famílias mais endividadas.


Fonte: PAULO SILVA PINTO - Correio Braziliense - 16/06/2014 - -
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