| 15 Junho 2014
Artigos - Cultura
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Houve uma época em que não se podia escrever sátiras no Brasil porque tudo o que acontecia já era satírico em si mesmo. Hoje tornou-se impossível escrevê-las porque tudo está passando rapidamente do ridículo ao deprimente, do deprimente ao aterrador.
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Quando um governo protege abertamente os usuários de crack enquanto reprime por todos os meios os fumantes de tabaco, está claro que nem acredita nos benefícios do crack
nem no poder assassino dos maços de cigarros: acredita apenas que é da
sua conveniência adestrar a população para adaptar-se, calada e
cabisbaixa, a qualquer situação absurda que ele lhe imponha. É a técnica
do bullying repetido. De tanto ser provocado, humilhado, intimidado, você desiste de reclamar.
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A presidenta posando toda alegrinha ao lado da entubadora de crucifixos é bullying no mais alto grau.
O exemplo vem de cima. Michele Obama movendo guerra às batatinhas fritas que as crianças adoram é exatamente a mesma coisa.
Idem, a escandalosa troca de cinco terroristas por um desertor.
Idem, a proibição dos termos “pai” e “mãe”.
E assim por diante. Quanto mais absurdo, melhor.
A idéia é sempre levar a platéia a desistir de fazer uso da razão.
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Quando
a mentira oficial se torna sistêmica, as pessoas não são forçadas
somente a repeti-la, mas a raciocinar de acordo com ela. O resultado é a
destruição dos processos normais de funcionamento da inteligência
humana. Daí ao império da bestialidade o passo é bem curto.
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Já
li todos os artigos do prof. Ígor Fuser. Foi na “Voz Operária” dos anos
1960. Ele ainda não havia nascido mas já escrevia igualzinho.
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O
sinal mais patente do primarismo mental brasileiro é a confusão de
categorias, da qual resulta que todos os julgamentos acabam ficando fora
de foco, isto quando não estão completamente errados ou não têm nenhum
sentido. Por exemplo, a crença pueril -- um automatismo mental quase
infalível hoje em dia -- de que, diante de uma afirmação qualquer, lida
ou ouvida, você sempre pode e sobretudo deve "concordar" ou "discordar".
Pessoas com alguma educação superior (coisa praticamente inexistente no
Brasil) sabem que, em geral, concordar ou discordar não têm a mais
mínima importância. Compreender, analisar, aprofundar, comparar,
atenuar, ampliar, contextualizar -- estas são as reações básicas do
leitor culto. O idiota, ao contrário, imagina que tudo o que se escreve
no mundo existe só para que ele o julgue, aplauda ou condene --
atividades às quais ele se entrega com uma presteza e uma volúpia
incomparáveis.
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A
impropriedade vocabular assinala sempre a confusão mental. Até hoje não
encontrei neste país um só palpiteiro profissional que compreendesse,
ao menos, que de um juízo de fato não cabe "concordar" ou "discordar".
Concordândia e discordância só existem em matéria de opiniões, de
valorações, de propostas. Se uma asserção factual é falsa, quem discorda
dela são os fatos, não o leitor.
É
perfeitamente possível você concordar com um conjunto de afirmações --
ou discordar -- sem entender uma só palavra do que ali está dito.
Concordância ou discordância são sentimentos. O sentimento nunca diz
nada sobre o objeto percebido, só sobre o estado do sujeito que percebe.
O
sentimento é um termômetro do seu estado interior, não uma régua para
medir a realidade. Como no Brasil todo mundo só escreve para concordar
ou discordar, isto é, para expressar sentimentos, a conclusão inevitável
é que cada um só fala de si mesmo, não de alguma coisa.
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É
assombroso constatar que justamente as pessoas que mais se gabam de
"pensamento crítico" só conhecem e respeitam um único argumento: o
argumento de autoridade. O que ouviram no colégio é "magister dixit" de
uma vez para sempre.
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Thomas
Piketty tem razão ao dizer que a desigualdade econômica aumentou nas
últimas décadas. Ele só se omite de notar que isso aconteceu junto com
um aumento ainda maior do poder de controle dos governos sobre a conduta
da população – um objetivo em cuja conquista se irmanam a militância
socialista e o capital monopolista que o subsidia. Esses processos não
são independentes.
Olhando propositadamente só a metade econômica do
cenário, é fácil atribuir o mal a uma abstração chamada “capitalismo”. É
assim que o bandido sai limpo, culpando a vítima. A revista “Exame”,
fingindo inocência, raciocina nessa linha e pergunta: “Por que o
capitalismo é tão injusto?” É injusto mesmo: persegue quem o defende e
enche de dinheiro quem o denigre.
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Se há alguém cuja opinião sempre merece ser ouvida, é o filósofo australiano Harry Redner. No seu livro mais recente (Totalitarianism, Globalization, Colonialism. The Destruction of Civilization since 1914,
London, Transaction Publishers, 2014), ele explica que a civilização
está mesmo sendo destruída, mas que é errado supor que com isso entramos
numa era de barbarismo.
O barbarismo supõe a ausência de administração
estatal e a desordem econômica incontrolável. O que vemos hoje, ao
contrário, são sociedades racionalmente administradas no mais alto grau,
onde ao mesmo tempo vão sendo suprimidos os valores morais e
intelectuais da civilização. Ele chama esse estado de coisas de
“pós-civilização” ou “decivilização”. Está certíssimo.
Publicado no Diário do Comércio.
www.olavodecarvalho.org
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