O país já conta com dezenas de milhares de colegiados nos moldes das instâncias que a presidente Dilma Rousseff pretende incentivar, a pretexto de "fortalecer as instâncias democráticas de diálogo". E a experiência acumulada não é nada animadora.
Um dos argumentos de quem defende o decreto bolivariano de Dilma
Rousseff – o de número 8.243, que estimula todos os órgãos da
administração federal a abrigar conselhos de "representantes da
sociedade civil" – é que o Brasil já conta com milhares de entidades
desse tipo, em todas as camadas de governo. É verdade. Mas a experiência
acumulada nesses fóruns não é nada animadora: eles têm muito pouco de
"democrático" e um conceito bem particular do que seja "sociedade
civil"...
O decreto foi assinado por Dilma há um mês. A pretensão de que uma
"política nacional de participação social" pudesse ser implementada pelo
Executivo numa canetada causou forte reação no Congresso.
Oposição e
base aliada ameaçaram barrar o decreto, mas o governo promete resistir.
Gilberto Carvalho, secretário-geral da Presidência e czar dos movimentos
sociais no Planalto, alega questões de princípio (o desejo de
"fortalecer e articular os mecanismos e as instâncias democráticas"),
mas, num ano eleitoral, é evidente o propósito de cooptar ou recooptar
sindicatos, ONGs e outras organizações sociais para o projeto petista.
Febre dos conselhos – A multiplicação dos conselhos é um fenômeno
induzido pela Constituição de 1988, numa aparente tentativa de reparar o
déficit democrático de um país recém saído da ditadura. De 1930 a 1989,
segundo o Ipea, foram criados apenas cinco conselhos federais no
Brasil. Nos 20 anos seguintes, surgiram mais 26.
Atualmente, são 40 -
incluindo as comissões. Por exigência legal ou simplesmente inspirados
nos colegiados federais, Estados e municípios também foram tomados por
essa "febre conselhista". Segundo o IBGE, 5553 cidades têm conselhos de
saúde, 3784 do meio ambiente e 976 da mulher (dados de 2013); 1231 de
política urbana, 5527 de assistência social, 1507 de segurança
alimentar, 357 do transporte, 1798 da cultura e 642 da segurança pública
(dados de 2012); 4718 da educação, 3240 da habitação e 195 do
saneamento (dados de 2011).
O formato mais comum de conselho não chega a ser uma jabuticaba, mas é
bastante peculiar. O governo dá forma ao conselho, define suas funções e
indica aproximadamente metade dos conselheiros.
A escolha dos demais
representantes é prerrogativa de ONGs, sindicatos e associações
variadas, muitas delas direta ou indiretamente cacifadas pelo governo. É
discutível quem representa o que nesses órgãos, mas é fato que o
cidadão comum não tem palavra: não vota, nem pode ser votado. A
participação, portanto, é indireta.
No papel – Os poderes de cada conselho variam bastante, de acordo com a
força das entidades que atuam no setor e a disposição do governo em
atendê-las.
Os menos institucionalizados mal saem do papel. Segundo
levantamentos do IBGE, a taxa de conselhos municipais que não tiveram
uma única reunião nos 12 meses anteriores à pesquisa é de: 30% para
segurança pública, 29% para transportes, 28% para política urbana e para
direitos da mulher, 27% para habitação e segurança alimentar e 25% para
cultura.
Já os conselhos mais institucionalizados podem ser bastante influentes.
É o caso do Conselho Nacional do Meio Ambiente, um dos colegiados mais
enraizados na máquina federal. É certo que o Conama não legisla, mas o
que se delibera por lá tem ampla repercussão - e eventualmente força de
lei.
O Conama é notório pelo grande número de conselheiros: 108. São
mais cadeiras do que o Senado (81) ou a Assembleia Legislativa de São
Paulo (94). É um verdadeiro congresso, de fato, com "bancadas",
"frentes" e "oposição". Não espanta que a maioria dos conselheiros (54%)
aponte como principal entrave as "questões políticas alheias à agenda
do Conselho", segundo sondagem do Ipea de 2010. Uma evidência das
facções do conselho: na mesma pesquisa, três resoluções são
simultaneamente citadas por conselheiros como as mais positivas e as
mais negativas do Conama.
Currículo e representatividade – Há gente séria no Conama, indicada por
entidades idem. O problema não é exatamente currículo, mas
representatividade. Os estados têm todos o mesmo peso, uma única vaga.
Regiões também, cada qual com duas cadeiras para os ambientalistas e uma
para representar as prefeituras. Cada ministério, cada secretaria e
cada uma das Forças Armadas têm uma vaga garantida. Ibama, centrais
sindicais, Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental e
Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) também.
Empresas têm oito lugares. Tudo somado, o governo tem folgada maioria
(72% das vagas).
Em entrevistas ao Ipea, a grande maioria dos conselheiros do Conama se
gaba de contribuir para a melhoria da gestão ambiental e de manter
constante contato com o segmento que diz representar. No dia a dia, a
história é outra. Dos 108 representantes titulares, só 10 compareceram
às três reuniões plenárias de 2014.
Na última, uma convocação
extraordinária para concluir o encontro anterior encerrado por falta de
quórum, havia apenas 26 titulares. E, embora haja dois suplentes para
cada titular, 38 cadeiras ficaram vazias. Por faltar repetidamente, três
representantes perderam temporariamente o direito a voto. "É
decepcionante demais", conta um dos poucos conselheiros assíduos, para
quem o órgão atravessa uma crise de legitimidade. "O Conama parou."
"Voando" – Os assuntos do Conama nem sempre são fáceis de acompanhar.
Um dos temas que mais ocuparam o conselho, e cujas indefinições ajudam a
explicar o esvaziamento das plenárias, são os desdobramentos da lei que
instituiu a Política Nacional de Resíduos Sólidos, de 2010, e do
decreto que a regulamentou (criando, de quebra, mais dois comitês...).
Um dos titulares com seguidas faltas no Conama reconhece não entender o
que "o pessoal das ONGs" discute por lá. "Eu passo o dia 'voando'",
admite.
Não é só no Conama que os conselheiros passam o dia "voando". Segundo
pesquisa do Ipea de 2013 com mais de 700 conselheiros da administração
federal, a maioria deles (61,5%) está convicta de que os temas abordados
são compreendidos apenas parcialmente pelo colegiado, e 6,7% acham que
os assuntos simplesmente não são assimilados. Nos órgãos que lidam com
questões de infraestrutura e recursos naturais, apenas 18,9% afirmam que
os assuntos discutidos são plenamente entendidos no conselho.
Dominado – A "governança da internet", da qual o governo federal
subitamente descobriu se orgulhar, é um exemplo de como os mecanismos de
participação social podem ser distorcidos. Criado em 1995, o Comitê
Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) é o órgão encarregado de formular
diretrizes para a tal governança. Foi de lá que saíram as linhas gerais
do Marco Civil da Internet - bem traçadas, diga-se.
Desde 2003, o CGI.br
segue aproximadamente o desenho previsto no decreto de Dilma: sociedade
civil e governo encontram ali representações "paritárias" – na verdade a
sociedade civil tem um peso pouquinho maior, 11 a 9 cadeiras. Tanto os
atos da secretaria como a escolha de seus membros passam por processos
"públicos" e "transparentes", uma vez que ganham divulgação no próprio
site do CGI.br.
A eleição do CGI.br tem a fórmula da maioria dos conselhos: só as
entidades pré-cadastradas participam. Segundo as regras do comitê, essas
associações devem ter CNPJ e dois anos de atividade – em comparação, o
decreto 8.243 é bem mais temerário, prevendo a participação de
"coletivos, movimentos sociais institucionalizados ou não
institucionalizados, suas redes e suas organizações", o que seria
absolutamente impossível de fiscalizar.
A última eleição, em fins de 2013, demonstrou a fragilidade desse
modelo. Para surpresa e mal estar do comitê, o colégio eleitoral foi
subitamente dominado por cooperativas de pequenos agricultores,
associações comunitárias e assentamentos da Paraíba, Pernambuco, Piauí e
Rio Grande do Norte com pouca ou nenhuma ligação com os temas do
comitê. De 234 entidades inscritas, pelo menos 130 provinham dos
grotões.
O candidato mais votado por esta sociedade civil preside uma
ONG de inclusão digital em João Pessoa (PB), não enxerga manipulação no
processo eleitoral e diz que os concorrentes fazem o mesmo: "fui mais
eficiente". Com algum idealismo, pode-se torcer para que a próxima
eleição seja mais disputada, diluindo esse tipo de distorção. O risco
mais palpável, contudo, é o de afastar do comitê os representantes,
digamos, menos atirados.
Panaceia – As limitações dos conselhos não significam, é claro, que não
haja inteligência na chamada "sociedade civil organizada" ou que a
única forma de participação democrática seja o processo eleitoral. Mas
sua adoção não pode ser deslumbrada – ou ardilosa, como o decreto 8.243.
O cientista social Rafael Cortez, da consultoria Tendências, lembra que
"participação social" não é panaceia para aumentar a eficiência das
políticas públicas – uma medida decidida por muitos "participantes" nem
sempre é sábia.
Uma função que esses colegiados poderiam desempenhar com alguma
eficácia é a de servir como uma espécie de câmara de eco das políticas
públicas. Com isso, os gestores não precisam esperar as eleições para
sondar as expectativas dos diversos setores da sociedade e conhecer a
repercussão de uma iniciativa. A maioria dos conselhos no Brasil,
contudo, vai muito além: eles efetivamente têm poder de decisão, o que
exige desenhos institucionais muito mais cautelosos. Para tanto, Cortez
alerta, os colegiados devem primar pela prestação de contas, para que o
restante da sociedade possa monitorar as decisões tomadas, e pela total
independência entre as partes, para impedir a cooptação das entidades.
Mais controle – É verdade, como disse o ministro da Casa Civil, Aloizio
Mercadante, que o decreto não cria conselhos. Mas é um incentivo e
tanto. O texto manda que todo órgão e entidade da administração federal,
direta e indireta, "considere" sua adoção - ou a de outra instância
prevista no texto (comissões, conferências, "mesas" etc). Seja qual for o
resultado desta "consideração", o texto prevê relatórios anuais sobre a
implementação desta "política nacional de participação social".
E quem "aconselha" os "conselheiros"? A resposta, pelo que se entende
do decreto, é: o próprio Gilberto Carvalho. Cabem à sua secretaria
"orientações", "coordenações" e "avaliações" do programa, por meio dos
palavrosos Sistema Nacional de Participação Social, Comitê Governamental
de Participação Social e Mesa de Monitoramento das Demandas Sociais,
todos de franca inspiração bolivariana.
O que se pode esperar desse
sistema é mais "controle social", diretriz fixada no decreto e pretensão
declarada de um a cada quatro conselheiros da administração federal. O
que se entende por "controle social" não é consenso entre acadêmicos.
Mas já se sabe o que o PT pensa disso, a julgar por sua cruzada para
patrulhar a imprensa por meio de certo "controle social da mídia".
Pretexto – Essa multiplicação de conselhos populares por decreto pode
satisfazer as panelinhas do terceiro setor, incrustando de ONGs a
máquina pública; pode atender às conveniências do Planalto, amansando os
movimentos sociais em ano de eleição; pode corresponder aos devaneios
dos "conselhistas", para quem os colegiados são um fim em si mesmo; pode
até, é claro, resultar em um ou outro conselho funcional. Mas nada
disso tem a ver com "aprofundar a democracia" – que é, como se sabe, o
pretexto dos autoritários para subverter o regime.
Fonte: Por DANIEL JELIN - revista Veja - 23/06/2014 - - 08:20:56
Nenhum comentário:
Postar um comentário