“Volto
ou não volto? Fico aqui no meu banheiro pensando, diante de espelhos
sem fim. Quantos Lulas refletidos ao infinito! É como se fosse um povo
de lulas. Isso! Eu sou o povo. Sou um fenômeno de Fé. Quanto mais me
denunciam, mais eu cresço. Eu desmoralizei escândalos, vulgarizei
alianças, subverti tudo, inclusive a subversão. Eu tenho o design
perfeito para isso. ‘Lula’ é um nome doce, carinhoso, familiar. ‘Lula’ é
fácil de entender. Agora, aqui sozinho, Marisa está dormindo, posso me
analisar. Volto ou não volto?
“Ai
que saudades das mãos da rainha Elizabeth — eu beijei sua mão com um
vago perfume de verbena. Ai que saudades dos tempos em que eu posava com
outros presidentes, com o Obama me puxando o saco dizendo que eu era o
‘cara’. Como era bom ver intelectuais metidos a besta me olhando com
fervor, me achando o símbolo do futuro, como se eu tivesse uma foice e
martelo na mão. Comi várias professoras da universidade; eu era um
messias para elas, que nunca tinham visto um operário a não ser o
encanador de seus banheiros. E os banqueiros e os empresários que tinham
medo de mim, mas se ajoelhavam por grana do BNDES, enchendo o partido
com dinheiro para campanhas?"
“Mas
está na hora de decidir. Tenho de ser cruel comigo mesmo. Vamos lá.
Ninguém está vendo. Autocrítica: a verdade é que eu nunca me interessei
pelo bem do povo. Essa visão de um operário pensando no país é uma
imagem romântica de pequenos burgueses. Operário quer é subir na vida.
Fui mestre nisso. Eu odiava o calor daqueles tetos de Eternit na
fábrica, aquela cachaça morna na hora do almoço.
“Aquele
torno que cortou meu mindinho foi minha primeira grande sorte (tem
gente que até acha que eu mesmo cortei...). Virei líder sindical. Foi a
sorte grande. Sem dedo, descobri a massa. A massa operária se postava
diante de mim e eu, com meus olhos em fogo, vi o mar de gente na greve
dos metalúrgicos e tive a luz de berrar: ‘Vocês me dão o posto de
comandante das negociações com os patrões?’
“Foi um mar de vozes: ‘Sim! Lulaaa!’ Naquele momento, eu vi que chegaria à presidência. Eu vi a facilidade de convencer o povão de fazer o que eu quisesse. Depois, os evangélicos descobriram o mesmo, mas eu fui pioneiro. Aliás, me baseei no Jânio Quadros, com vassoura e caspa artificial. Ele foi o criador da política do espetáculo. Eu era bonitinho, boas sindicalistas eu papei... Era fácil, não precisava nem cantar. Mas, sejamos sérios. Ali, no espelho, me vejo multiplicado e tenho de decidir.
“Que é melhor para mim? Os caras falam: ‘Volta, que o povo quer!’ E eu? Será que me interessa?
“Será
que vai ser bom para minha imagem no futuro? Porque hoje minha imagem
está joia. Ganho 400 paus por palestra, vou ao exterior e falo qualquer
coisa, eles me amam a priori, eu, um herói operário.
“Os
franceses e outros babacas, bisbilhoteiros das ‘revoluções’ tropicais,
jamais entenderão o que tive de fazer para crescer no poder.
“Jamais
entenderão as sujeiras que tolerei para manter as mãos limpas, como me
dei bem com os 300 picaretas que denunciei antes e que depois foram
minha tropa de choque. Jamais entenderão que eu nunca soube de nada,
sabendo de tudo...
“Foi
aí que se fez a luz! Eu entendi que se eu quisesse fazer reformas,
mudanças radicais, eu perderia meu poder de messias. Eu vi que o
verdadeiro Brasil é o PMDB e os corruptos todos. Tudo foi construído
assim, por séculos, nesse adultério entre a grana pública e privada. Só a
corrupção move o país. Mantive o legado do FHC e chamei-o de herança
maldita... FHC não sabia falar com o povão... Ele fez tudo e não é nada,
eu não fiz nada e sou tudo. Também nunca entendi por que os tucanos não
defenderam o governo dele. Nem ele.
“Quando vi que era a ‘estratégia do medo’, caí matando.
“Me aproveitei do Plano Real e depois disse que eu é que fizera a queda da inflação. E agora a porra está voltando...
“Até
o Roberto Jefferson me deu sorte, me ajudou muito denunciando os
babacas dos comunistas que me atazanavam desde o inicio. A Marisa dizia:
‘Essa gente não presta...’ E eu não ouvia... Veio o Jefferson
(obrigado, Roberto...), expulsa os bolcheviques da minha cola e eu pude
inventar a nova ideologia: um grande balé na mídia para manter o povo
feliz. Eles pensavam: se ele chegou lá, nós também podemos...Ele é
‘nóis’. Não entendo como o FHC não teve a grandeza nem de um
‘populismozinho’.
“Tudo
tão simples; basta falar como eles, falar de futebol, fingir de vítima,
injustiçado por ter origem humilde, dividir o mundo em ricos e pobres,
mentir estatísticas numa boa, falar do futuro.
“Depois,
espelho meu, tive mais sorte. Começou o surto dos emergentes. Como
entrou grana aqui! Gastei tudo para consolidar meu poder. Mas chega de
saudade; a realidade é: afinal, volto ou não volto?
“O perigo é eu voltar e ter de lidar com a cagada que eles fizeram. Essa Dilma e o Mantega... Porra...
“Já
pensou? Ter de acordar cedo, beber meu uísque 30 anos só de noite... E
aguentar o Berzoini, o Rui Falcão, falando como se morassem na URSS... E
pior é que os comunas vão ficar mais assanhados, mais ‘aloprados’
ainda. Vão querer mais ‘bolivarianismo’. Já me aporrinharam e
fu*&ram tudo com o mensalão... Eu bem que avisei: ‘Vão com menos
sede ao pote!...’ Só fizeram merda e depois tive de me virar, dizer que
não sabia. Só me encheram o saco. Mofem na Papuda.
“Se
eu voltar, vou ter de satisfazer essa laia. Vou ter de reprimir a
mídia. Disso até gosto, para assegurar minha bela imagem no futuro.
“Será que vale a pena botar em risco minha imagem?
“E
tem mais: minha maior descoberta foi que o Brasil não tem conserto. É
impossível governar. A política não rola mais. É um parafuso espanado.
Se os tucanos ganharem, vão se fu*&er também.
“Minhas imagens: quantos lulas refletidos nos espelhos...
“‘Lula! Que você está fazendo aí, trancado?’ ‘Já vou, Marisa; porra, não posso nem ir ao banheiro?’
“Isso, espelhos meus! Batam palmas para mim! Milhares de ‘eus’ me aplaudindo! Obrigado, meu povo!
“E aí? Volto ou não volto?”
21 de maio de 2014
Arnaldo Jabor é Cineasta e Jornalista.
Arnaldo Jabor é Cineasta e Jornalista.
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