As peripécias de Vladimir Putin e seus “black blocs” com tanques e kalashnikovs em atuação cada vez mais desaforada na Ucrânia vêm confirmar uma impressão que ha um bom tempo vem tomando forma na minha cabeça: ha uma grande chance de se repetir como farsa, em pleno Terceiro Milênio, a divisão bi-polar do mundo que caracterizou o século 20.
A farsa, alias, estava mais na versão original – pelo menos desde as revelações de Nikita Krushev no famoso 20º Congresso do Partido Comunista da extinta União Soviética, de 1956, em que foi confirmada oficialmente a natureza fundamentalmente sanguinária do socialismo real – do que nesta que se esboça agora onde os putins e seus cooptados pelo mundo afora assumem-se francamente como o que são sem meias palavras, laivos de romantismo ou acenos a utopias.
Já expus em mais de um artigo aqui no Vespeiro os argumentos que comprovam que a presença e a força do crime organizado é uma medida segura da autenticidade de todos os regimes que se afirmam democráticos posto que ele só se estabelece com a conivência do Estado.
Ou seja, o crime organizado é função direta da corrupção que, por sua vez, só frutifica e se institucionaliza a ponto de permitir que uma organização declaradamente dedicada a explorar e submeter uma sociedade pela violência se estabeleça e transforme num poder paralelo onde quer que os politicos possam viver fora do alcance da lei e, graças a isso, explorar em vez de servir os seus representados.
Onde o Estado, que tem o monopólio da força armada, está decidido a acabar com o crime ele não consegue resistir-lhe nem por cinco minutos, fato de que o mundo está cheio de exemplos, sendo lamentavelmente mais numerosos os negativos que os positivos.
Ocorre que não existem duas formas de organização tão idênticas entre si quanto a estrutura de uma quadrilha do crime organizado e a de um Estado totalitário baseado no chamado “centralismo democrático” que era o eufemismo que se usava para descrever as ditaduras comunistas do século passado onde todo poder emana do chefe e nada nem ninguém pode se lhe opor sob pena de eliminação física sumária.
O que o citado 20º Congresso do PC da URSS revelou ao mundo é que não demorou nem um minuto para que as “ditaduras do proletariado” instaladas em nome da utopia igualitária que apaixonou gerações dos cortes mais generosos e altruístas da humanidade se transformasse – intoxicada pelo exercício do poder sem limitação nenhuma – na máquina criminosa de moer carne e consciências humanas chefiadas por Lênin, por Stalin e por seus sucessores pelo mundo afora de cima de uma montanha de cadáveres que nunca cessou de se agigantar enquanto durou o regime que só se extinguiria em 1989. Foram, literalmente, centenas de milhões de assassinados as vítimas desses 72 anos verdadeiramente “de chumbo“.
O instrumento por excelência da carnificina que varreu todas as “repúblicas socialistas soviéticas”, da russa onde tudo começou às dezenas de outros países que ela anexou pela força militar, era a KGB, a polícia política do regime, encarregada de fiscalizar não só as ações como também o pensamento de todos os seus súditos e eliminar fisicamente – até preventivamente, isto é, antes de qualquer ato que o confirmasse – todos os suspeitos de “dissidência”, outro eufemismo que descrevia qualquer manifestação, por mais tênue que fosse, de desacordo com o regime, tais como uma troca de correspondência ou, menos que isso, uma conversa pessoal entre quatro paredes entreouvida e denunciada.
Vladimir Putin foi o ultimo chefe da KGB soviética e, graças a isso, conseguiu tomar o poder depois do interregno de indefinição que se seguiu à “abertura” e dele ou das vizinhanças dele não tem arredado o pé desde 1999. Ele pensa, age e estrutura o seu esquema de poder do mesmo modo como o crime organizado se organiza, pensa e age. Ha uma afinidade eletiva entre eles e por isso é tão difícil discernir onde acaba o Estado russo e começa a estrutura criminosa que gira em torno dele.
Tendo o regime soviético, que se instalou no bojo de uma revolução violenta contra os monarcas absolutos que tinham reinado incontestes até 1917, durado 72 anos, pode-se concluir que nunca houve um russo que tivesse vivido sob qualquer coisa que se aproximasse de um Estado de Direito democrático, nem mesmo com uma imitação precária dele como as que nós chegamos a conhecer.
Como a organização do Estado Soviético era a única existente no país no dia seguinte à Queda do Muro, ela simplesmente continuou no poder, agora dispensada de render preitos à utopia morta, trocou as fardas pelos ternos de griffe e os meios de submissão dos súditos do constrangimento físico para o constrangimento econômico, exatamente como propos o nosso Lula que passassem a fazer os últimos ditadores e guerrilhas comunistas armados da América Latina pouco menos de uma década mais tarde na já célebre reunião do Foro de São Paulo, organização que se propõe ser uma nova versão regionalizada da antiga Internacional Comunista (Comintern) que coordenava as ações das forças socialistas em todo o mundo no milênio passado.
A “nomenklatura” do partido, nome que se dava aos funcionários graduados da ditadura soviética que viviam acima da lei e desfrutavam de confortos e privilégios econômicos mal disfarçados, foi substituída pelos famigerados “empresários” russos de hoje cevados na corrupção e sócios do Estado, que segue sendo tratado como uma propriedade pessoal do presidente que tem sobre ele plenos poderes. Até para, como dantes, prender e mesmo assassinar os biolionários que ele próprio cria e que, por qualquer razão, vierem a incomodá-lo.
Agora, depois de uma pausa para reagrupamento da sua antes especialmente agressiva vertente internacional de projeção de poder, a Russia sob Putin, reconciliada com seu passado, já se sente forte e confortável o suficiente para voltar a alimentar as ambições imperialistas de sempre, graças às tradicionais limitações dos Estados democráticos de oferecer-lhe resistência dentro das leis nacionais e internacionais pelas quais se obrigam a se pautar.
O que se esboça no horizonte, portanto, é um mundo dividido entre as poucas sociedades “de contrato”, regidas por leis e instituições livremente pactuadas entre os cidadãos e o Estado, com divisão de poderes, direitos das minorias respeitados e alternância no comando da máquina do Estado, e os países entregues a um chefe inconteste com poderes absolutos, agora assumidos como tal, usando a economia, acompanhada de violência quando necessário, como arma de opressão e perenização no poder internamente e de conquista pura e simples no campo das relações internacionais.
São esses compromissos que constituem as tais “conquistas da burguesia“, a classe que emerge pelo mérito e por isso é temida e odiada pelos candidatos a tirano e, principalmente, pelas clientelas que eles constituem para sustentar seus esquemas de poder baseados em lealdades apoiadas na distribuição de cargos e privilégios.
Como antes, haverá sempre nos alvos que Putin visar fora da Russia, os fidel castros da vida, modernos “Faustos” dispostos a servir os regentes desse novo polo global de poder econômico e militar em troca de se livrar, “em casa“, de incomodações como eleições, partidos de oposição, investigações por corrupção ou a perpsectiva de ter de apear do poder ao fim de um reles mandato.
Tendem a se alinhar nesse grupo todas as sociedades que saltaram do absolutismo monárquico para o século 20 adotando contrafações mais ou menos assemelhadas a democracias, incorporando este ou aquele atributo delas, mas sem nunca terem vivido de fato sob o pleno império da lei dos verdadeiros Estados de Direito.
É este o pano de fundo contra o qual o Brasil, que vem tateando entre esses dois pólos pendendo ora para um ora para o outro, parte para a eleição deste ano que vai definir – provavelmente para os próximos muitos anos – de que lado dessa linha vamos trilhar a próxima etapa do nosso caminho.
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