quinta-feira, 17 de julho de 2014

A volta à “normalidade”


9 de julho de 2014 
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Artigo escrito uma semana antes da derrota
do Brasil pela Alemanha, mas que o jornal O Estado de S. Paulo
só publicou na edição de 9/7/2014


Gradual e seguramente, como sempre, o país vai voltando à normalidade. 


O inesperado relacionamento com a igualdade perante a lei reforçado pela especialíssima carga simbólica de ter sido proporcionado pela ação isolada de um neto de escravos foi, afinal, somente um namoro fortuito; um amor proibido que não deu em casamento. 


Joaquim Barbosa voltou para casa e a onda de indignação com tudo que pagamos e não levamos que vinha crescendo parece que rolava mesmo mais em função do medo do que inglês pudesse ver do que daquilo que brasileiro está acostumado a tragar cotidianamente sem dar um único pigarro. Já se vai quebrando mansamente na praia do “sucesso da Copa”, ameaçando transformar-se em puro refluxo se a Seleção levar “o caneco”.

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Do “Sabe com quem cê tá falando?” de sempre demos uma voltinha pelo “Quem você pensa que você é?” de todo Estado de Direito, e cá estamos de volta, com a Papuda esvaziada, mesmo à custa da paciente desmontagem do Supremo Tribunal Federal, último bastião do Poder Judiciário independente.


E “paciente” teve de ser, reforce-se, porque o velho esquema corporativista lusitano matizado pelas tintas de Antonio Gramsci e reciclado na nova palavra de ordem do Foro de São Paulo de hoje, segue “repudiando”, como sempre, o estupro comprovavel, que pode suscitar reação, e concentrando-se em trabalhar a “complacência do hímen” e a dessensibilização moral da Nação para as penetrações cotidianas que corrompem aos poucos as nossas liberdades democráticas.


Quê 1/6 da pena que nada! Não pra vosselências!
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Aeroportos, transporte público e estádios pela metade mas pelo dobro do preço da obra inteira?

O que é que tem, afinal!

Joseph Blatter, aquele a quem é dado desfazer nossas leis a troco de uma cervejinha, já não tem mais nada contra, muito pelo contrário.

O charme e a “cordialidade” do povo brasileiro como sempre curam tudo. Está aí a última pesquisa eleitoral pra não nos deixar mentir.

O que se vai restabelecendo, enfim, é a “normalidade” fundacional e multisecular do privilégio no país-continente de apenas 15 proprietários onde ascensão social é, até hoje, quase sempre decorrência de um “toque de Midas”, só que — alto lá! — dado “em nome da revolução”…


Contraditório? Normal!


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O que é, afinal, essa exumação cerimonial dos cadáveres existentes e dos cadáveres inexistentes de ha meio século que nem a Constituição consegue anistiar senão a confirmação de que dar aos filhos da “classe média alta”, culpados ou não, o mesmo tratamento que segue sendo dispensado cotidianamente aos meros filhos do Brasil, inocentes ou não, sem que ninguém reaja é, entre nós, crime imperdoável e imprescritível?


O Brasil assistiu dia desses pela TV à entrega cerimonial das “revelações” de diplomatas americanos dos anos 70 à “Comissão da Verdade”: prisões sem mandato, “aperto” nos prisioneiros dentro de instalações militares, pau-de-arara, eventualmente morte sob tortura registrada como consequência de resistência à prisão…


Vimos todos o ar compungido com que as recebeu e comentou aquele imaculado advogado “de classe média alta” que se apresenta como o paladino deste acerto de contas histórico.
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Enquanto ouvia essas “revelações” fiquei pensando com que incrédulo escândalo não as estariam recebendo os telespectadores do Capão Redondo, do Morro do Alemão, das favelas e periferias de Maceió, de Fortaleza, de João Pessoa; os parentes dos 96% dos 57 mil brasileiros assassinados só no ano passado que nunca terão satisfação da Justiça nem indenizações. 


Com que indignação não se estaria dando conta dessas graves violações dos direitos humanos aquela metade dos 715.655 presos do Brasil que já cumpriu sua pena ou nunca teve culpa formada mas continua dentro da jaula das feras sob o olhar impassível da mesma OAB daquele advogado luzidio que se quer heroína dos injustiçados do Brasil mas que pôs e continua mantendo fora da lei a advocacia “pro bono”, aquela universalmente consagrada “para o bem” de quem não pode pagar, e exigindo que o Estado molhe antes a mão de quem vai descascar esse abacaxi do que se apresse a mitigar a sede de justiça do pobre.


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Experimente, no entanto, “dar um google” em “…de classe média alta é preso…”. O meu computador devolveu 1 milhão 340 mil resultados, quase todos títulos de noticiários variados.


“De classe média alta” é uma especificação que não pode faltar nas notícias dos jornais brasileiros, mas só quando se refere a atacantes. Vítima “de classe média alta” ou rica é normal. Não requer registro. Mas para atacante, no país que foi treinado a acreditar que crime é, exclusivamente, função da miséria, é imprescindível.


 Vai para o título porque o título está reservado para o extraordinário e aqui é indubitavelmente extraordinário, seja ser “de classe média alta” e “mesmo assim” cometer um crime, seja por, mesmo o sendo, ter sido preso por isso ainda que só para voltar logo a ser solto … de uma “cela especial”, é claro.


Se a imprensa, fiscal da democracia, incorpora esse critério sem tugir nem mugir, quem é que não ha de?
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Pois taí: no caso das vítimas da repressão de meio século atrás, é da última vez que filho da “classe média alta” levou porrada que estamos falando, o que é inadmissível e imprescritível no país que constrói suítes especiais nos presídios quando algum deles faz por merecer ser preso e, apesar de tudo, vai, bem ao lado das celas abarrotadas e fétidas onde se amontoam os filhos do Brasil, inocentes e culpados mas sem advogados.


Não é tanto vê-los instalarem-se no seu privilégio dando “murros revolucionários” no ar; é a mansidão quase inconsciente com que o Brasil traga e — as pesquisas mostram, — tranquilamente digere tudo isso que nos diz que o privilégio continua sendo a instituição mais sólida deste país.


Na pátria do “direito adquirido” onde todo mundo tem um, há quem se queixe por não te-los bastantes e ha quem arreganhe os dentes e sibile que “agora chegou a minha vez”. Só não há quem realmente os condene apenas pelo que são para o resto do mundo democrático.


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