Meus amigos: mesmo estando alguns dias fora do Brasil, li o texto da nova lei de trânsito, sancionada pela presidenta Dilma e publicada no dia 12/5/14 (só vai entrar em vigor em novembro/14).
Nós estamos loucos (eu talvez por causa do fuso horário ou outra causa
a ser investigada) ou o legislador é que fez uma tremenda barbeiragem?
Vejam a questão (opinem também, porque gostaria de saber quem está
redondamente equivocado):
O legislador agregou no delito de homicídio no trânsito (CTB, art. 302:
Praticar homicídio culposo na direção de veículo automotor) uma forma
qualificada (pena maior), com a seguinte redação:
"§ 2o Se o agente conduz veículo automotor com capacidade psicomotora
alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância
psicoativa que determine dependência ou participa, em via, de corrida,
disputa ou competição automobilística ou ainda de exibição ou
demonstração de perícia em manobra de veículo automotor, não autorizada
pela autoridade competente:" "Penas - reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro)
anos, e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação
para dirigir veículo automotor." (NR)"
Como se vê, no art. 302, quando a morte resulta (1) de direção
embriagada ou (2) de participação em "racha" ou (3) de manobra
arriscada, a pena será de reclusão (não de detenção), de dois a quatro
anos (muda de detenção para reclusão, o que significa pouca diferença na
prática). ...
Pois bem: no art. 308 o legislador agravou todas as penas previstas
para quem participa de "racha". Foram contempladas três situações: (1)
participa do "racha", gera risco de acidente, mas não lesa ninguém (pena
de 6 meses a 3 anos + sanções acessórias); (2) participa do "racha" e
gera lesão corporal grave (pena de 3 a 6 anos mais sanções acessórias);
(3) participa do "racha" e gera morte (pena de 5 a 10 anos mais sanções
acessórias). Vejamos o novo texto legal:
"Art. 308. Participar, na direção de veículo automotor, em via pública,
de corrida, disputa ou competição automobilística não autorizada pela
autoridade competente, gerando situação de risco à incolumidade pública
ou privada:
Penas - detenção, de 6 (seis) meses a 3 (três) anos, multa e suspensão
ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir
veículo automotor.
§ 1o Se da prática do crime previsto no caput resultar lesão corporal
de natureza grave, e as circunstâncias demonstrarem que o agente não
quis o resultado nem assumiu o risco de produzi-lo, a pena privativa de
liberdade é de reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, sem prejuízo das
outras penas previstas neste artigo.
§ 2o Se da prática do crime previsto no caput resultar morte, e as
circunstâncias demonstrarem que o agente não quis o resultado nem
assumiu o risco de produzi-lo, a pena privativa de liberdade é de
reclusão de 5 (cinco) a 10 (dez) anos, sem prejuízo das outras penas
previstas neste artigo." (NR)
O problema: aqui no art. 308 o resultado morte provocado culposamente
aparece como qualificadora do delito de participação em "racha". Já no
art. 302 (homicídio culposo), é a participação em "racha" que o torna
qualificado (mais grave). No delito de participação em "racha", é a
morte que o qualifica. No delito de homicídio, é a participação no racha
que o qualifica. Mas tudo isso é a mesma coisa! O mesmo fato foi
descrito duas vezes. Na primeira situação (art. 302), a descrição legal
foi de trás para frente (morte em virtude do "racha"); na segunda (art.
308), da frente para trás ("racha" e depois a morte). Para não haver
nenhuma dúvida (talvez essa tenha sido a preocupação do emérito
legislador), descreveu-se o mesmo fato duas vezes. Seria uma mera
excrescência legis (o que já é bastante reprovável), se não fosse o
seguinte detalhe:
No art. 302 (homicídio culposo em razão de "racha") a pena é de
reclusão de dois a quatro anos; no art. 308 ("racha com resultado morte
decorrente de culpa") a pena é de cinco a dez anos de reclusão! Mesmo
fato, com penas diferentes (juridicamente falando, sempre se aplica a
norma mais favorável ao réu, ou seja, deve incidir a pena mais branda -
in dubio pro libertate).
O legislador, quando redigia o art. 302, era um (talvez fosse o
período da manhã); quando chegou na redação do art. 308, passou a ser
outro (talvez já fosse o período da tarde). O fato é o mesmo, mas as
valorações punitivas são completamente diferentes. E agora? O legislador
derrapou ou nós é que estamos loucos? (gostaria de ouvir a opinião de
vocês). Se a loucura for minha, nada poderá ser feito (a não ser me
internar). Se a barbeiragem (e derrapagem) foi do legislador, vamos
correr para corrigir o erro. O Brasil não merece mais uma polêmica
legislativa, geradora de enorme insegurança.
LUIZ FLÁVIO GOMES, jurista e diretor-presidente do Instituto Avante Brasil.
Fonte: LUIZ FLÁVIO GOMES - 13/05/2014 - - 15:58:23
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