O Brasil é tradicionalmente o país da chamada emoção erótica. Uma emoção limitada ao contato, à proximidade, ao vínculo familiar ou social. Brasileiro é muito unido a quem está dentro de seu círculo e muito indiferente a quem está fora. Ele ama e se preocupa apenas com os seus.
Meira Penna descreve este traço no livro Em berço esplêndido, o estudo mais útil já escrito sobre o assunto. Diz ele: “O brasileiro traduz literalmente o mandamento cristão de amar o próximo. Acredita que a caridade começa em casa… e talvez nela termine. É a solidariedade do contíguo e do consanguíneo. O próximo é antes de tudo o parente, mas também o amigo, o sócio, o cliente; todos os conhecidos, aqueles com quem se convive e se trabalha; que podem ser vistos, ouvidos e sentidos diariamente. Só estes merecem a expansão específica da cordialidade e da philia. Os desconhecidos, que se danem!”
José Ingenieros, em seu incontornável livro O homem medíocre, descreve esta mesma limitação afetiva como sintoma de mediocridade: “O medíocre limita seu horizonte afetivo a si mesmo, à sua família, aos seus camaradas, à sua facção; mas não sabe estendê-lo até a Verdade ou a Humanidade, que apenas pode apaixonar ao gênio.”
Eu também citava um trecho de Olavo de Carvalho sobre essa incapacidade do brasileiro de estender seus horizontes até a Verdade:
“O brasileiro, mesmo culto, não capta as exigências específicas do domínio moral, intelectual e religioso: decide as questões mais graves do destino humano pelo mesmo critério de atração e repulsa imediatos com que julga a qualidade da pinga ou avalia o perfil dos bumbuns na praia. Daí sua tendência incoercível de tomar a simpatia pessoal, a identidade de gostos ou a adequação às preferências da moda na classe artística como sinais infalíveis de alta qualificação moral.”
Muito antes de Carvalho, Penna e até Ingenieros, porém, o homem medíocre já fora descrito – com outros sintomas facilmente reconhecíveis no atual dia a dia brasileiro - por Ernest Hello (1828-1885), o filósofo, ensaísta, crítico literário, biógrafo e tradutor católico francês que, como escreveu o crítico literário Rodrigo Gurgel, “marcou o pensamento de Leon Bloy (que o considerava seu mestre), Georges Bernanos, Paul Claudel e vários outros”, entre eles, acrescento eu, Erik von Kuehnelt-Leddihn, o reacionário austríaco que estudou, entre outras coisas, o espírito de rebanho dos homens que aderem a movimentos de massa. Escreve ele em A ameaça da multidão (“Menace of the Herd“):
“O verdadeiro ‘rebanhista’ vai cuidadosamente evitar agir ou pensar originalmente, de modo a não destruir a uniformidade que lhe é tão cara, e ele também está pronto para se erguer contra qualquer um que se atreva a agir de forma independente e, assim, destruir a unidade sagrada do grupo uniforme a que ele pertence…
O homem verdadeiramente dominado por esse instinto inferior não só vai se alegrar em marchar em meio a vinte mil soldados uniformemente vestidos, todos pisando ritmicamente em uma direção, como vai encontrar uma gratificação quase igual ao contemplar o espetáculo a partir de uma varanda.
Ele não só vai ficar feliz de sentar-se em meio a outras duas centenas de empresários de óculos, bebendo cerveja e cantarolando uma canção em uníssono, como um aspecto de um arranha-céu com mil janelas idênticas provavelmente vai impressioná-lo mais do que um quadro de Boticelli ou Zurbarán. O ‘rebanhista’ é verdadeiramente o homme médiocre que Ernest Hello descreveu tão bem.”
O pavor que o medíocre tem do pensamento e da ação independentes – sobretudo os de gente talentosa – já estavam presentes de fato na obra de Ernest Hello, em frases e trechos assim:
“Se a palavra exagero não existisse, o medíocre a inventaria.”
“O medíocre pode ter estima para com pessoas virtuosas e homens de talento. Mas tem medo e horror dos santos e dos gênios, pois que os julga exagerados.”
O homem medíocre “nunca fala; repete sempre. Não concebe que um homem ainda obscuro, ao qual se é muito chegado, possa ser um gênio.”
“O medíocre vence porque segue a correnteza; o homem superior triunfa porque vai contra a correnteza.”
“A trajetória do sucesso consiste em andar junto com os outros; a da glória em marchar contra os outros.”
“O temor que o medíocre tem das coisas superiores faz-lhe dizer que estima antes de tudo o bom senso, mas ele não sabe o que é bom senso. Entende, por tal, a negação de tudo o que é grande.”
“O medíocre diz que há aspectos bons e maus em todas as coisas, e que não se pode ser absoluto nos julgamentos etc.”
“Há uma apreensão que permanece no medíocre, ativa e em funcionamento: é o medo de se comprometer. Por isso exprime alguns pensamentos (banais) com a reserva, a timidez e a prudência de um homem que teme que suas palavras, demasiadamente ousadas, possam sacudir o mundo.”
Destaque para os escritores prediletos:
“Ao medíocre agradam-lhe os escritores que não dizem nem sim nem não sobre nenhum tema, que nada afirmam e que tratam com respeito todas as opiniões contraditórias. Toda afirmação lhe parece insolente, pois exclui a proposição contrária. Mas se alguém é um pouco amigo e um pouco inimigo de todas as coisas, o medíocre o considerará sábio e reservado, admirará sua delicadeza de pensamento e elogiará o talento das transições e dos matizes.
Para escapar da censura de intolerante, feita pelo medíocre a todos os que pensam solidamente, seria necessário se refugiar na dúvida absoluta; e, ainda nesse caso, seria preciso não chamar a dúvida pelo seu nome. É necessário formulá-la em termos de opinião modesta, que preserva os direitos da opinião oposta, tomar ares de dizer alguma coisa e não dizer nada. É preciso acrescentar a cada frase uma perífrase açucarada: ‘parece que’, ‘ousaria dizer que’, ‘se é permitido expressar-se assim’.”
Os fanáticos da moderação de hoje, como se vê, são os medíocres de Ernest Hello. A epidemia do relativismo e do politicamente correto só fez aumentar o grau do fanatismo. Olavo de Carvalho ensina que “Moderação na defesa da verdade é serviço prestado à mentira”, mas, entre a mentira e a verdade, o medíocre escolhe a meia verdade, porque ela lhe soa mais moderada. Hello não deixava barato:
“A ausência de horror para com o erro, para com o mal, para com o Inferno, para com o demônio, esta ausência parece que chega a ser uma desculpa para o mal que cada um leva em si mesmo. Quanto menos se detesta o mal em si mesmo, mais se prepara um meio de desculpar o que se acaricia na própria alma.”
A emoção erótica, a limitação afetiva, o critério de atração e repulsa imediatos para a tomada de decisões, o espírito de rebanho, o pavor de se comprometer, o fanatismo da moderação, a indiferença para com o mal – tudo isso é “acariciado” diariamente na alma brasileira.
Depois de ler O Homem (“L’Homme“), de Hello, Garrigou-Lagrange decidiu abandonar a medicina e ingressar na Ordem dos Dominicanos, tornando-se, mais tarde, notável filósofo e teólogo – e fazendo jus assim a uma outra frase de seu inspirador:
“O homem que procura conhecer as causas (das coisas) dirige uma prece à luz.” Você aí não precisa ir tão longe na vida intelectual após ler este post e quem sabe estudar a obra dos autores nele reunidos. Mas convém não esquecer o mínimo que você precisa saber para não ser medíocre.
Felipe Moura Brasil – http://www.veja.com/felipemourabrasil
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