quarta-feira, 28 de maio de 2014

O futuro chegou e transformou tudo em lata de sopa Campbell’s – até a banana de Daniel Alves







O gesto bananizado




RUTH DE AQUINO





No primeiro dia, foi o gesto genial. Era um domingo. Ao se curvar no campo do estádio espanhol, descascar a banana, comê-la de uma abocanhada e cobrar o escanteio, Daniel Alves assombrou o mundo. Não só o mundo do futebol, esse que chama juiz de “veado” e negro de “macaco”. 

O baiano Daniel, mestiço de pele escura e olhos claros, assombrou o mundo inteiro extracampo. Vimos e revimos a cena várias vezes. “Foi natural e intuitivo”, disse Daniel, o lateral direito responsável pelo início da virada do Barcelona no jogo contra o Vilarreal. Por isso mesmo, por um gesto mudo, simples, rápido e aparentemente sem raiva, Daniel foi pop, simbólico, político e eficaz.

Só que, hoje, ninguém, nem Daniel Alves, consegue ser original por mais de 15 segundos. Andy Warhol previa, na década de 1960, que no futuro todos seríamos famosos por 15 minutos. Pois o futuro chegou e banalizou os atos geniais, transformando tudo numa lata de sopa de tomate Campbell’s. 


A banana do Daniel primeiro reapareceu na mão de Neymar, também vítima de episódios de racismo em estádios. Neymar escreveu na rede em defesa do colega e dele próprio: “Tomaaaaa bando de racistas, #somostodosmacacos e daí?”. Uma reação legítima, mas sem a maturidade de Daniel. Natural. Há quase dez anos de estrada de vida entre um e outro.

Imediatamente a banana passou a ser triturada por milhares de “selfies”. O casal Luciano Huck-Angélica lançou uma camiseta #somostodosmacacos. Branco, o casal que jamais correu o risco de ser chamado de macaco apropriou-se do gesto genial, por isso foi bombardeado por ovos e tomates na rede, chamado de oportunista. 

A presidente Dilma Rousseff, em seu perfil no Twitter, também pegou carona no gesto de Daniel “contra o racismo” e chamou de “ousada” a atitude dele. Depois de ler muitas manifestações, acho que #somostodosbobos, a não ser, claro, quem sente na pele o peso do preconceito.

“Estou há 11 anos na Espanha, e há 11 anos é igual... Tem de rir desses atrasados”, disse Daniel ao sair do gramado no domingo. Depois precisou explicar que não quis generalizar. 

“Não quis dizer que a Espanha seja racista. Mas sim que há racismo na Espanha, porque sofro isso em campos (de futebol) diferentes. Não foi um caso isolado. Não sou vítima, nem estou abatido. Isso só me fortalece, e continuarei denunciando atitudes racistas.”

Tudo o que se seguiu àquele centésimo de segundo em que Daniel pegou a fruta e a comeu, com a mesma naturalidade do espanhol Rafael Nadal em intervalo técnico de torneios mundiais de tênis, como se fizesse parte do script, tudo o que se seguiu àquele gesto é banal. 

Os “selfies”, a camiseta do casal 1.000, o tuíte de Dilma, as explicações de Daniel após o jogo, esta coluna. Até a nota oficial do Villareal, dizendo que identificou o torcedor racista e o baniu do estádio El Madrigal “para o resto da vida”. Daniel continuou a evitar as cascas de banana. Disse que o ideal, para conscientizar sobre o racismo, seria fazer o torcedor “pagar o mal com o bem”.

De toda a “bananização” do gesto de Daniel, a mais ironizada foi de Huck e sua mulher. Ele já explicou que não lucra nada com a camiseta. Huck não se emenda e escorrega na fama. Acha que é unanimidade no Brasil, mas ninguém é. Poucos podem ser brilhantes ao agir sem pensar. Em 2009, Huck foi vítima de assalto. Levaram seu Rolex em São Paulo. Contando com uma onda de solidariedade, Huck publicou um artigo no jornal Folha de S.Paulo

Escreveu que, caso morresse com um tiro de 38, deixaria “uma pobre criança órfã e uma jovem viúva”, “uma multidão bastante triste”, “um governador envergonhado” e “um presidente em silêncio”. Sua morte, escreveu Huck, seria “a manchete principal no Jornal Nacional”. Provavelmente verdade.

As banalidades, os plágios e as mentiras proliferaram com o Facebook. Redes sociais são bastante úteis, especialmente em ditaduras, democratizam o acesso à informação, ajudam os solitários a se conectar, mas são excelentes ferramentas para perder amigos. Tornaram-se também palco de intolerância e exibicionismo. O Facebook começa a afugentar muitos, pela quantidade de bobagens e pela perda de tempo de leitura e outros hábitos prazerosos.

De chorar de rir são as traduções automáticas, do português para o inglês, das manifestações na rede. Quando alguém sensato protestou, na semana passada, ao escrever que “pegar carona no gesto do Daniel Alves, uma bela sacada contra o racismo, é dose pra leão”, o Facebook explicou aos gringos : “Hitchhiking in the gesture of Daniel Alves, a beautiful balcony against racism, is dose to Lion”. 

Imagina na Copa...

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