segunda-feira, 5 de maio de 2014

Redações pontuam no Enem mesmo ferindo critério técnico

 04/05/2014 22h11


Grupo de professores avaliou as redações produzidas na intenção de zerar no Enem. Presidente do INEP tentou justificar a possível falha.



Um exame em escala continental. Os destinos de mais de cinco milhões de jovens, que sonham ingressar na universidade, definidos em dois dias de provas. O Enem, Exame Nacional do Ensino Médio, mobilizou boa parte das famílias brasileiras em outubro do ano passado.

Até que ponto a avaliação corresponde ao desempenho de cada um desses candidatos?

E se a redação, que foi sobre a Lei Seca, tiver letra de música, hino de time de futebol, recadinho para o Papai Noel?

Dizer que Getúlio Vargas morreu em um acidente de carro porque bebeu vinho no jantar e dirigiu, é ignorância, deboche ou criatividade?

E se a redação for uma cópia escancarada do texto base, vai levar zero?

Tudo isso estava em dez redações feitas por jornalistas do Fantástico, em seis estados. Eles tinham uma tarefa: escrever textos que afrontavam as regras, na intenção de zerar. No ano passado, uma nova regra apareceu, para evitar escândalos como a pontuação de provas com receita de macarrão instantâneo e com o hino do Palmeiras. Textos com formas propositais de anulação, que desrespeitam o exame, são eliminados.

Das dez redações feitas pelo Fantástico, quatro foram zeradas pelo Enem. Seis pontuaram. Uma delas, com boa média: 600 pontos.

Nós reunimos no Rio de Janeiro cinco especialistas em redações vindo de quatro estados. Eles avaliaram as provas sem saber que foram feitas por jornalistas. Dadas as notas, revelamos.

Redação com o hino do Ibis

"O importante é ler as redações, a fim de que as notas sejam justas. E cantar o hino do Íbis, o pior time do mundo: ‘Vamos, meu Ibis, à luta. Em qualquer disputa, estaremos ao seu lado’", dizia a primeira redação.

A banca do Fantástico concordou com o Enem e o hino do Ibis zerou a prova.

Redação com parágrafo escrito com a língua do “P”

Outra redação zerada pelo Enem: um parágrafo escrito na língua do “P”. Mas nenhum dos professores da banca do Fantástico consideraram a língua do “P”.

Todos concordaram também com a anulação da prova com trechos de letra de música.


Redação com recado para o avaliador

E quando há um recado ao avaliador: "Será que meu corretor vai permitir que meu texto seja aprovado? Ou vale barbaridade como no exame passado?" Todas essas redações foram zeradas.

Nas quatro redações, nossos avaliadores e o Enem concordaram e elas estão entre as 1.398 que foram zeradas por causa do deboche. Como o Enem, eles pontuaram outras duas redações polêmicas, mas deu grande diferença nas notas.

Redação com recado para o Papai Noel

“Por isso, Papai Noel, peço ao senhor que ilumine a cabeça dos magistrados brasileiros no próximo Natal!”

Agostinho Dias Carneiro, professor de letras da UFRJ: “Considerei isso uma inserção um pouco infantil e tirei os pontos por aqui. Então, ele está com 620”.

Fantástico: O resto do texto está bom?


Agostinho Dias Carneiro: O resto do texto é bom.


Wilton Ormundo, professor de português: Eu pontuei bem baixo. Foram 210 pontos.


Agostinho Dias Carneiro: As instruções para os avaliadores são altamente subjetivas e fragmentadas.


Fantástico: Então, isso permite uma avaliação mais subjetiva.


Agostinho Dias Carneiro: Com certeza.

São avaliadas cinco competências em uma redação. Cada uma vale 200 pontos. Basicamente, os professores querem saber se o aluno é capaz de escrever um texto coerente, com boa argumentação e uso da língua formal.

Cada redação é corrigida por dois avaliadores. Se as notas tiverem diferença de mais de 100 pontos, um terceiro avaliador é chamado. E, segundo o MEC, quase a metade dos textos - cerca de 2,5 milhões de redações - foi para o terceiro corretor.

Permanecendo a dúvida, o texto vai para uma banca de especialistas. “Você vê que essa inserção do Papai Noel gerou, aqui entre nós, cinco posições bem diferentes, e nenhuma delas está errada”, declara Cláudio Cezar Henriques, professor de letras da UERJ.

Redação que fere a norma do uso da língua formal

A redação seguinte fere a norma de uso da língua formal. É escrita com as abreviações usadas em mensagens de texto, ou conversas por computador.

“Esse texto não pode ser penalizado porque apresenta o ‘internetês’, afirma o professor de português Osvaldo Menezes Vieira.

“Se é problema de grafia, não é um problema que interfira na organização mental do texto. Isso é só um problema de grafia. Então, o desconto aí é pequeno”, diz Agostinho Dias Carneiro, professor aposentado de letras UFRJ.

“Eu dei 240. Porque, a despeito de haver problema de ortografia. Mas há problemas também na consistência narrativa”, explica Chico Viana, professor de letras da UFPB.

‘Internetês’ não anula a prova, mas não é uma boa ideia usar. A nota cai muito.

Redação com erros históricos

A redação com os erros históricos tirou 600 pontos no Enem e foi a que mais dividiu opiniões entre os professores da nossa banca. O texto diz, entre outros absurdos, que a Lei Seca foi criada na ditadura militar, pelo AI-5, que o carro foi inventado na idade média e que o presidente Getúlio Vargas, que se suicidou, morreu em acidente depois de um jantar em que bebeu vinho.

“Lembra o ‘samba do criolo doido’”, afirma o professor Chico Viana.

Dois professores deram zero. “A proposta de redação avisou claramente para esse aluno que é impedido que ele adentre a universidade, uma vaga pública gratuita de qualidade com um texto que é incoerente e promove um certo deboche a respeito da proposta”, declara o professor de português Osvaldo Menezes Vieira.

Dois professores deram notas parecidas, baixas: 300 e 280. “Em certo momento, a gente fica naquela dúvida: Houve propósito de excessos indevidos para ironizar, ou realmente desconhecimento histórico?”, indaga o professor aposentado Chico Viana.

“Você vai encontrar, sim, muitos estudantes brasileiros mal preparados e que escreveriam absurdos mais ou menos semelhantes a este aqui”, afirma o professor de português Wilton Ormundo.

E um dos nossos professores convidados deu a redação controversa a mesma nota que o Enem: 600. Lembramos: uma nota boa, que pode dar acesso à universidade.

“Não fico feliz por isso não. Mas admito que seria assim, uma espécie de paródia, uma sátira”, explica Cláudio Cezar Henriques, professor de letras da UERJ.

“Com 600, eu acho que você está dando um recado errado para esse candidato. Ele vai ingressar na universidade sem conhecimentos mínimos que ele deveria ter como cidadão, inclusive”, ressalta o professor Wilton Ormundo.

Essa redação, cheia de erros históricos, ficou na faixa de maior concentração das notas do Enem. Quase 28% dos candidatos tiraram entre 500 e 600 pontos.

Redações com apenas cinco ou seis linhas originais

Os casos mais graves são os de três redações. Os jornalistas do Fantástico escreveram apenas cinco ou seis linhas originais, e completaram a resto com cópia. Dois nem tentaram disfarçar. Tiraram trechos dos textos que serviam de base para a própria redação.

Como um ‘copiar-colar’ feito à mão. O último, copiou trechos de questões da prova aplicada no mesmo dia, parágrafos inteiros, que nem tinham relação com o tema Lei Seca.


Redações pontuaram mesmo ferindo critério técnico do Enem

E todos pontuaram, mesmo ferindo um critério técnico do Enem. Que diz o seguinte: se houver cópia esse trecho copiado deve ser desconsiderado. E o avaliador vai corrigir só o que sobrar de autoria do candidato, mas para isso é preciso que tenha pelo menos sete linhas, sem as sete linhas, é zero.

Na nossa banca, todas zeraram. Mas no Enem tiraram 260, 380 e 440 pontos.

Professor Wilton: Esse não é nem subjetivo. Seria uma razão bastante objetiva para zerar.

Professor Osvaldo: Dois avaliadores que não se conhecem, em lugares diferentes do país, darem nota para um texto que é claramente cópia dos textos motivadores? Então, é inaceitável.


Avaliador do Ministério da Educação é remunerado por produtividade

No ano passado, o Ministério da Educação contratou e treinou 7.121 avaliadores. Cada redação foi corrigida por dois corretores, que podiam estar em extremos opostos do país. Eles recebiam pelo computador no mínimo 50 redações por dia. O avaliador é remunerado por produtividade. Quanto mais redações corrigir, mais dinheiro vai ganhar.

Fantástico: Como o senhor avalia a avaliação feita dessas provas?

Francisco Soares, presidente do INEP: A avaliação cumpriu a função que a gente esperava.
Essas dez redações elas receberam notas adequadas ao que elas tinham para apresentar. Nós não temos um sistema falhando aqui.


Os corretores do Enem assinam um compromisso de confidencialidade. Não podem falar sobre o processo. Por isso, uma professora não mostra o rosto. Ela diz que se inscreveu para poder preparar melhor seus alunos do ensino médio, conhecendo o sistema por dentro.

Fantástico: E qual foi a sua impressão?

Corretora: Muito boa, muito boa.


Ela conta que chegou a receber 150 redações em um só dia para corrigir. Mas se recusou.

Corretora: Eu não consigo. Eu corrijo 50 redações. Eu não queria e não saberia corrigir 100 redações. Corrigir muitas em um dia pode trazer mais cansaço, pode provocar mais cansaço, mas ainda que esteja muito cansado, nós quase decoramos a proposta.

Fantástico: Então, não dá para passar despercebido?


Corretora: Não. Nao deve passar despercebido.

Presidente do INEP fala sobre possível falha na correção das redações

Segundo o MEC, 3.185 redações foram zeradas por causa de cópia ano passado. Outras quase nove mil zeraram porque não tinham sete linhas.


Fantástico: Como estas passaram?

Francisco Soares, presidente do INEP: Primeiro, vamos deixar claro de que essas redações foram construídas por pessoas sofisticadas. Essa sofisticação não corresponde ao aluno típico. Então, nesse caso, os textos começam com linhas autorais e a cópia está espalhada.


Fantástico: O senhor me desculpe, mas eu vou insistir. Porque são cinco linhas autorais e o resto é tudo cópia. Não é nem reescrito, é cópia.


Francisco Soares: Mas eu quero insistir que existiam linhas autorais. Em uma correção de redação, há uma dimensão subjetiva. Por isso é que nós temos mais de um corretor. Aqui está se discutindo que ela devia ter zero. Mas eu tive notas muito baixas. De 260, de 300 e pouco.


Fantástico: De 440.


Francisco Soares, presidente do INEP: De 440, abaixo dos 500 pontos que seria o ponto que o Inep considera como o nível mínimo que alguém que está terminando o ensino médio deve ter.


Fantástico: Dependendo do desempenho dele nas outras provas, ele pode ter acesso à universidade, não pode?

Francisco Soares, presidente do INEP: O critério de uso da nota do Enem é um critério da universidade. Sim, esse aluno, ele pode ser admitido na universidade com essa nota. Fica muito mais difícil porque essa nota está baixa e há uma enorme competição.


Só neste ano, mais de 170 mil alunos estraram em universidades públicas com o resultado do Enem. Mesmo com possíveis erros de avaliação, a melhor maneira de brigar por uma vaga é se preparar bem, e levar o exame a sério.

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