Por Bernardo Santoro, publicado no Instituto Liberal
O Decreto n. 8.243/14 entrou em debate no
Congresso Nacional. Tem por objetivo instituir a Política Nacional de
Participação Social – PNPS e o Sistema Nacional de Participação Social –
SNPS, de modo a “fortalecer e articular os mecanismos e as instâncias
democráticas de diálogo e a atuação conjunta entre a administração
pública federal e a sociedade civil” (art. 1o). O Congresso
ameaça anular o decreto através de um Decreto Legislativo, após pressão
de parte da sociedade e da imprensa contra o seu teor.
O conceito de sociedade civil organizada,
historicamente, se refere às organizações voluntárias com finalidades
específicas promovidas por indivíduos, em conjunto, sem relação com o
Estado. Portanto, a característica básica do conceito de sociedade civil
organizada é justamente se contrapor ao Estado através da sua
auto-organização com fins específicos, que podem ter a ver com
interesses sociais mais amplos, como caridade e filantropia, ou até
mesmo de ajuda mútua com fins mais egoístas, como clubes e sindicatos.
Já a mistura dessa sociedade civil, que
deve ser autônoma e anti-estatal por excelência, com a estrutura de
Estado, a descaracteriza. A sociedade civil deixa de ser vista como
associação voluntária autônoma de fins específicos e passa a ser um
grupo de pressão política para promoção de interesses organizados, ou,
para ser mais específico, uma gangue de lobistas.
Portanto, essa lei que regulamenta a
“participação da sociedade civil na gestão pública” está praticando um
eufemismo. Essa lei nada tem a ver com participação popular, tem a ver
com lobby de agentes politicamente organizados. É a institucionalização
do lobby junto ao poder executivo, tal como já existe hoje junto ao
poder legislativo e judiciário através das chamadas “audiências
públicas”.
Na verdade, deveria haver um debate
anterior ao Decreto em si, acerca da legitimidade do lobby junto aos
governos para busca de fins particulares. Uma das minhas maiores
preocupações sempre foi o uso da máquina pública para fins particulares.
Frederic Bastiat já denunciava o uso da máquina do Estado para “falsas
filantropias” com dinheiro alheio há mais de duzentos anos.
Com a
descaracterização do princípio liberal da isonomia, que assegurava o
tratamento igualitário de todos perante a lei e o Governo, sem distinção
de qualquer natureza, por uma visão de tratamento de “desiguais a
partir da desigualdade”, toda uma série de favorecimentos pessoais
passou a ser institucionalizada e legitimada a partir da discussão
democrática, onde o grupo de interesse mais forte e organizado lesava
toda a sociedade.
Há quem defenda, no entanto, a
legitimidade do lobby como sendo parte do jogo democrático.
Quem
considera válido o referido Decreto certamente entende que lobbies são
parte da vida democrática e que é legitima a distribuição forçada de
parte da riqueza social para esses grupos de interesse se os mesmos
saírem como vencedores da contenda política, seja através de eleições,
seja através da pressão junto a órgãos do poder executivo, tal como esse
Decreto dispõe e regulamenta. Eu, certamente, não sou uma dessas
pessoas. Ainda acredito na moralidade da propriedade privada, da
produção livre e do enriquecimento através da satisfação de consumidores
e não da pressão política.
E essa moralidade precisa ser levada em
consideração. O Deputado Federal Alessandro Molon (PT/RJ) declarou, de
maneira bastante espirituosa a meu ver, que “se os partidos de direita
não têm inserção social, não tem base social, lamento, mas isso não
podemos resolver”. Essa declaração é equivocada na premissa da
existência de partidos com vocação de direita no Brasil. O movimento
liberal brasileiro está agora criando um partido de direita liberal (o
Partido Novo) e o movimento conservador brasileiro está agora
descobrindo o PSC como partido de direita conservadora, e só agora o
próprio PSC se descobre como partido conservador.
A declaração do
Deputado seria absolutamente correta se ele declarasse que “liberais e
conservadores não têm inserção em movimentos sociais”. Isso sim
seria uma verdade irrefutável. E não têm inserção porque esses cidadãos
não têm tempo e dinheiro à disposição para participar de tais
movimentos, pois, dentro da própria moralidade desses cidadãos, eles
estão exercendo sua propriedade privada criando produtos e serviços no
mercado para enriquecer através da satisfação de consumidores.
A
moralidade liberal e conservadora é avessa, pela sua natureza, ao saque
estatal (obviamente não estou aqui me referindo aos movimentos
conhecidos como neoliberais e neoconservadores, que distorcem as
referidas visões clássicas com fins de saque estatal), e seus afiliados
estão no mercado, trabalhando, produzindo e gerando riqueza.
Isto posto, cabe agora a pergunta:
exatamente para que servem os tais conselhos e comissões de políticas
públicas criados pelo Decreto? De acordo com o art. 5o, o
Governo deve “considerar” o que foi deliberado por esses órgãos. Mas o
que é “considerar”? É aplicar suas ordens diretamente? Indiretamente?
São diretrizes? Essas questões restam não respondidas. Podemos trabalhar
com duas possibilidades:
1 – Os conselhos e comissões tem algum
poder de fato ou de direito: se isso ocorrer, trata-se de uma quebra de
fato do processo democrático, que é um dos pilares da Constituição. As
políticas públicas deixariam de ser feitas por representantes
democraticamente eleitos e passariam a ser elaboradas por pessoas sem
nenhuma legitimidade, exercendo poder justamente porque tem tempo para
estar nas comissões por não estarem trabalhando e produzindo para a
sociedade, o que traz péssimos incentivos econômicos e questionamentos
sobre a moralidade das fontes financeiras que estão mantendo
extra-oficialmente esse militante dentro dos conselhos;
2 – Os conselhos e comissões não tem
nenhum poder de fato ou de direito: se realmente essa é a realidade,
como defendem certos juristas ligados ao PT, então simplesmente não há
necessidade nenhuma de se ter qualquer conselho ou comissão, e a
presença lobista desses movimentos sociais podem continuar a ocorrer
como se dá atualmente, diretamente juntos aos gestores e agentes
políticos, sem que o Estado precise usar recursos que seriam melhor
destinados em escolas e hospitais para bancar a estrutura física e os
gastos dessas comissões, pois ainda que os comissários não sejam
remunerados, há uma série de gastos para o exercício dessa atividade que
seriam custeados pelo Governo em detrimento de reais necessidades
públicas.
Em suma, na melhor das hipóteses, esses
conselhos são inúteis e dispendiosos. Na pior das hipóteses,
são instrumentos anti-democráticos e também dispendiosos.
O que o Brasil precisa agora não é de
mais instrumentos de facilitação de lobbies. O que precisamos é
desmontar esse aparelho estatal que distribui benesses de maneira
concentrada para grupos de interesses específicos, sejam eles
“populares” ou “burgueses”. Precisamos atacar e não montar esses
“sovietes” modernos que criam benefícios imerecidos para movimentos
sociais, e também atacar e desmontar os BNDES e agências de fomento que
subsidiam grandes empresários às custas de todos, o que também é um
problema grave de favorecimento pessoal no Brasil.
Legitimar um lobby através da existência
prévia de outros lobbies vai apenas nos transformar em um Estado em que
todo mundo enriquece através das conexões que possui, e não através
do valor da sua produtividade para a sociedade. E essa é uma receita
certa e infalível para o caos sócio-econômico.
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