quinta-feira, 12 de junho de 2014

Grupos de interesse organizados e o Decreto 8.243



Por Bernardo Santoro, publicado no Instituto Liberal



O Decreto n. 8.243/14 entrou em debate no Congresso Nacional. Tem por objetivo instituir a Política Nacional de Participação Social – PNPS e o Sistema Nacional de Participação Social – SNPS, de modo a “fortalecer e articular os mecanismos e as instâncias democráticas de diálogo e a atuação conjunta entre a administração pública federal e a sociedade civil” (art. 1o). O Congresso ameaça anular o decreto através de um Decreto Legislativo, após pressão de parte da sociedade e da imprensa contra o seu teor.


O conceito de sociedade civil organizada, historicamente, se refere às organizações voluntárias com finalidades específicas promovidas por indivíduos, em conjunto, sem relação com o Estado. Portanto, a característica básica do conceito de sociedade civil organizada é justamente se contrapor ao Estado através da sua auto-organização com fins específicos, que podem ter a ver com interesses sociais mais amplos, como caridade e filantropia, ou até mesmo de ajuda mútua com fins mais egoístas, como clubes e sindicatos.


Já a mistura dessa sociedade civil, que deve ser autônoma e anti-estatal por excelência, com a estrutura de Estado, a descaracteriza. A sociedade civil deixa de ser vista como associação voluntária autônoma de fins específicos e passa a ser um grupo de pressão política para promoção de interesses organizados, ou, para ser mais específico, uma gangue de lobistas.



Portanto, essa lei que regulamenta a “participação da sociedade civil na gestão pública” está praticando um eufemismo. Essa lei nada tem a ver com participação popular, tem a ver com lobby de agentes politicamente organizados. É a institucionalização do lobby junto ao poder executivo, tal como já existe hoje junto ao poder legislativo e judiciário através das chamadas “audiências públicas”.


Na verdade, deveria haver um debate anterior ao Decreto em si, acerca da legitimidade do lobby junto aos governos para busca de fins particulares. Uma das minhas maiores preocupações sempre foi o uso da máquina pública para fins particulares. Frederic Bastiat já denunciava o uso da máquina do Estado para “falsas filantropias” com dinheiro alheio há mais de duzentos anos. 


Com a descaracterização do princípio liberal da isonomia, que assegurava o tratamento igualitário de todos perante a lei e o Governo, sem distinção de qualquer natureza, por uma visão de tratamento de “desiguais a partir da desigualdade”, toda uma série de favorecimentos pessoais passou a ser institucionalizada e legitimada a partir da discussão democrática, onde o grupo de interesse mais forte e organizado lesava toda a sociedade.
Há quem defenda, no entanto, a legitimidade do lobby como sendo parte do jogo democrático. 



Quem considera válido o referido Decreto certamente entende que lobbies são parte da vida democrática e que é legitima a distribuição forçada de parte da riqueza social para esses grupos de interesse se os mesmos saírem como vencedores da contenda política, seja através de eleições, seja através da pressão junto a órgãos do poder executivo, tal como esse Decreto dispõe e regulamenta. Eu, certamente, não sou uma dessas pessoas. Ainda acredito na moralidade da propriedade privada, da produção livre e do enriquecimento através da satisfação de consumidores e não da pressão política.


E essa moralidade precisa ser levada em consideração. O Deputado Federal Alessandro Molon (PT/RJ) declarou, de maneira bastante espirituosa a meu ver, que “se os partidos de direita não têm inserção social, não tem base social, lamento, mas isso não podemos resolver”. Essa declaração é equivocada na premissa da existência de partidos com vocação de direita no Brasil. O movimento liberal brasileiro está agora criando um partido de direita liberal (o Partido Novo) e o movimento conservador brasileiro está agora descobrindo o PSC como partido de direita conservadora, e só agora o próprio PSC se descobre como partido conservador. 

A declaração do Deputado seria absolutamente correta se ele declarasse que “liberais e conservadores não têm inserção em movimentos sociais”. Isso sim seria uma verdade irrefutável. E não têm inserção porque esses cidadãos não têm tempo e dinheiro à disposição para participar de tais movimentos, pois, dentro da própria moralidade desses cidadãos, eles estão exercendo sua propriedade privada criando produtos e serviços no mercado para enriquecer através da satisfação de consumidores. 

A moralidade liberal e conservadora é avessa, pela sua natureza, ao saque estatal (obviamente não estou aqui me referindo aos movimentos conhecidos como neoliberais e neoconservadores, que distorcem as referidas visões clássicas com fins de saque estatal), e seus afiliados estão no mercado, trabalhando, produzindo e gerando riqueza.

Isto posto, cabe agora a pergunta: exatamente para que servem os tais conselhos e comissões de políticas públicas criados pelo Decreto? De acordo com o art. 5o, o Governo deve “considerar” o que foi deliberado por esses órgãos. Mas o que é “considerar”? É aplicar suas ordens diretamente? Indiretamente? São diretrizes? Essas questões restam não respondidas. Podemos trabalhar com duas possibilidades:

1 – Os conselhos e comissões tem algum poder de fato ou de direito: se isso ocorrer, trata-se de uma quebra de fato do processo democrático, que é um dos pilares da Constituição. As políticas públicas deixariam de ser feitas por representantes democraticamente eleitos e passariam a ser elaboradas por pessoas sem nenhuma legitimidade, exercendo poder justamente porque tem tempo para estar nas comissões por não estarem trabalhando e produzindo para a sociedade, o que traz péssimos incentivos econômicos e questionamentos sobre a moralidade das fontes financeiras que estão mantendo extra-oficialmente esse militante dentro dos conselhos;


2 – Os conselhos e comissões não tem nenhum poder de fato ou de direito: se realmente essa é a realidade, como defendem certos juristas ligados ao PT, então simplesmente não há necessidade nenhuma de se ter qualquer conselho ou comissão, e a presença lobista desses movimentos sociais podem continuar a ocorrer como se dá atualmente, diretamente juntos aos gestores e agentes políticos, sem que o Estado precise usar recursos que seriam melhor destinados em escolas e hospitais para bancar a estrutura física e os gastos dessas comissões, pois ainda que os comissários não sejam remunerados, há uma série de gastos para o exercício dessa atividade que seriam custeados pelo Governo em detrimento de reais necessidades públicas.

Em suma, na melhor das hipóteses, esses conselhos são inúteis e dispendiosos. Na pior das hipóteses, são instrumentos anti-democráticos e também dispendiosos.

O que o Brasil precisa agora não é de mais instrumentos de facilitação de lobbies. O que precisamos é desmontar esse aparelho estatal que distribui benesses de maneira concentrada para grupos de interesses específicos, sejam eles “populares” ou “burgueses”. Precisamos atacar e não montar esses “sovietes” modernos que criam benefícios imerecidos para movimentos sociais, e também atacar e desmontar os BNDES e agências de fomento que subsidiam grandes empresários às custas de todos, o que também é um problema grave de favorecimento pessoal no Brasil.


Legitimar um lobby através da existência prévia de outros lobbies vai apenas nos transformar em um Estado em que todo mundo enriquece através das conexões que possui, e não através do valor da sua produtividade para a sociedade. E essa é uma receita certa e infalível para o caos sócio-econômico.

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